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A difícil arte de conciliar: o perfil dos universitários da rede pública por ocupação

“Tem sido difícil conciliar trabalho e universidade. Tenho ficado defasada em algumas matérias por falta de tempo e porque o cansaço mental tem sido grande, tenho desenvolvido crises de ansiedade, com muita carga de stress. Estou precisando reorganizar minha rotina para tentar conciliar os dois mundos”, relata a estudante Rafaela Rodrigues Soares, 20, graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ela foi uma das respondentes da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) das IFES, que compreende todos os estudantes no universo de 63 universidades federais e dois institutos federais, em um total de 395 campis..

Hoje a Agência Conexões continua com a série “Quem são os estudantes das universidades públicas brasileiras?”. Para saber mais sobre esses novos universitários, hoje apresentamos dados sobre a ocupação dos universitários. A pesquisa de perfil socioeconômico dos (as) estudantes de graduação foi elaborada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis (FONAPRACE), vinculado à Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) e foi realizada nos anos de 1996, 2003, 2010 e 2018.

Para mapear o perfil dos estudantes, diversas questões foram adicionada ao longo das pesquisas e, dentre o questionário, os dados obtidos referentes à ocupação dos estudantes permitiram mapear questões que perpassam temas que abordamos nos últimos dias como sexo, faixa etária, raça/etnia e renda.

Segundo a V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) das IFES, em 2018 os estudantes trabalhadores representam 29,9%. Os que não trabalham e estão a procura de emprego representam 40,6% e os inativos correspondem a 29,5%.

Dentre os estudantes que trabalham, 50,4% se autodeclaram pretos e pardos e 50,1% são do sexo masculino. Esse grupo apresenta outras características que o diferencia dos demais estudantes e que permite compreender a mudança do perfil da comunidade universitária ao decorrer dos anos, principalmente, após políticas públicas que possibilitaram a expansão das universidades. Os estudantes trabalhadores são mais velhos, estando na faixa de “25 anos e mais” e estão predominantemente, em cursos das áreas de Ciências Sociais Aplicadas e Ciências Humanas. São também a maioria nos cursos noturnos, o que representa 48,4%, seguido de 26,0% que frequentam os cursos diurnos e 25,6% frequentam cursos de período integral.

Rafaela Soares, que atualmente cursa o terceiro período de um curso matutino, ficou sabendo sobre a pesquisa através de um professor, que utilizou o começo da aula para falar sobre a importância de respondê-la. Para ela, o estudo é relevante porque apresenta a diversificação das pessoas que ocupam o espaço universitário e como o perfil desses estudantes têm mudado. Soares utiliza como exemplo a história de sua família. “As mulheres eram proibidas, por causa do machismo excessivo, de frequentarem escolas. Minha tia me contava como a avó dela e suas irmãs foram proibidas de ler. Algumas mulheres da minha família conseguiram fugir disso, se formaram pedagogas, como minha tia e minha mãe. Isso significa muito em relação à quebra desse machismo institucional e estrutural”.

Rafaela, que se auto-declara branca, não é a primeira pessoa de sua família a se formar em uma universidade. Para seu ingresso na universidade utilizou da Política de Cotas, para alunos de escola pública, independente de renda. E considera que seu maior privilégio é justamente a cor da pele. Mas, por crescer em um bairro de periferia e ter toda a sua educação no sistema público, reconhece também as dificuldades que ela e milhares de estudantes enfrentam.


Rafaela Rodrigues Soares, 20, graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

A estudante é conhecida por seus trabalhos sociais, sendo uma das referências na cultura do hip-hop em Uberlândia. Ela conta que como produtora cultural atua realizando eventos sociais-culturais, como a Batalha do Coreto 034, que acontece todos os finais de semana no centro da cidade, além de sua carreira solo e como integrante do grupo “DMG- Das Minas Gerais Hip-Hop”. Mas, para completar a renda da família, realiza trabalhos como freelancer com contagem de estoque de supermercado e farmacia para uma empresa terceirizada, que não contrata ninguém. “Eu já estou nela há uns três anos, e quando aparece o freela eu vou, mas ultimamente tem ficado difícil, pois a maior parte dos trabalhos são de madrugada e no meio de semana, aí fica complicado trabalhar de madrugada e vir para a ufu de manhã”.

O que me ajuda a não precisar mais fazer tantos freelas é a bolsa de R$ 400,00 que ganho através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). No PIBID, os estudantes têm  a oportunidade de entender como funciona as escolas. Atuando em escolas públicas da cidade, realizam trabalhos para conhecer a escola a partir de visitas in loco, mapeamentos e parte administrativa, como forma de crescer e se integrar cada vez mais à licenciatura.

Do número à realidade

Bruno Diego Nascimento de Miranda, 30, também integra esses números. Natural de Januário, no norte de Minas Gerais, mora há 10 anos em Uberlândia e, ao entrar para uma universidade federal, optou por um curso noturno. No seu caso, Geografia, na Universidade Federal de Uberlândia. Miranda que, assim como a maioria do grupo de estudantes que trabalha, se auto-declara pardo e solteiro, atua como Agente Comunitário. É servidor público estatutário e cumpre seis horas diárias, totalizando 30 horas semanais. Ele reconhece que a carga de trabalho menor possibilita que possa dedicar algumas horas do seu dias para os estudos mas, segundo ele, a maior dificuldade ainda consiste em conseguir conciliar o tempo de trabalho com o tempo necessário para os estudos acadêmicos.

Na pesquisa também foi constatado que, dentre o universo de estudantes trabalhadores, 31,7% têm carteira assinada e 17,0% são funcionários (as) públicos (as). Dentre esse grupo, a maioria absoluta recebe “Até 1 e meio SM”, o que representa  cerca de 62,2% . Quanto a carga horária de trabalho, 45,9% trabalham mais de 30 horas semanais.

Outra carga horária comum para os estudantes que trabalham refere-se ao transporte público sendo que 46,1% usam transporte coletivo (Metrô, ônibus, van, embarcação, trem etc.) para se deslocar até a universidade. Para 18,4% dos (as) ocupados (as) o tempo de deslocamento até o local de estudo se configura como uma dificuldade que interfere em suas vidas e no contexto acadêmico. Somado o peso do tempo utilizado em transporte mais a carga horária de trabalho, é possível verificar o cerne da problemática e das preocupações que cercam o dia-a-dia desses universitários.

Miranda relata que utiliza transporte público e condução própria. De ônibus, gasta, em média, 1h para chegar até a universidade, o que segundo ele “atrapalha um pouco para chegar no horário de aula porque saio 18h30 do trabalho e tenho que estar às 19 horas na universidade”.

Eduardo Pereira da Silva, 43, cursa o sétimo período do curso de geografia noturno na UFU. Ao contrário de Miranda, Eduardo da Silva respondeu ao questionário que serviu de base para esta pesquisa. Representante comercial em sistema PJ, conta que tem mais condições de organizar seus horários mas, para ele, conciliar os horários de trabalho e estudos também é uma dificuldade. “A maior dificuldade é chegar antes das 19h30, pois de 16h30 às 19h30 é o horário de maior intensidade no trabalho, e sempre chego atrasado”, conta.

No relato de ambos entrevistados encontramos a ideia de que as universidades ainda não estão preparadas para receber e lidar com os estudantes que trabalham. Para Miranda, existem uma série de dificuldades como, por exemplo, o Intercampi, que não funciona à noite e o sistema de avaliação. “Na faculdade, muitas atividades avaliativas são extensas, como preparar portfólio, preparar seminários, escrever artigos. E isso, muitas vezes, demanda muito tempo que o aluno trabalhador não dispõe”, relata.

Silva acrescenta que “para quem trabalha e pensa em prosseguir em um mestrado ou doutorado fica muito prejudicado pois não tem condições em participar de nenhum laboratório, grupos de pesquisas, entre outra atividades, ficando, assim, sempre com pontuação inferior em relação a quem tem tempo para essas atividades”.

Enquanto alternativas para uma melhor recepção a esses alunos, Miranda acredita que um caminho seria ofertar mais bolsas para quem trabalha e estuda, a ampliação dos horários de funcionamento dos laboratórios e intercampi, além de dinamizar o processo de avaliação. “Uma alternativa seria focar mais em atividades em sala de aula, ou ter um tempo diferenciado para a entrega dessas atividades para quem é trabalhador. E avaliações orais, não só pautadas na múltipla escolha, mas também nas questões dissertativas”, conclui.

A estudante Rafaela Soares também concorda que as universidades não estão preparadas para receber alunos que trabalham. “Por exemplo, o curso de Ciências Sociais da UFU, que optou por não abrir vagas para o noturno. Uma parcela muito grande dos alunos do meu curso trabalha à tarde ou à noite, e quando fizemos nossa inscrição no Sisu, estava lá que o curso é matutino e, quando chegamos aqui, tem uma ou outra aula à tarde. E, para a maioria, que trabalha em call-center das 14h às 21h, faz como? Aí precisa tentar conversar com professor, mas já vi caso de professor que não aceitou. Como não existe a possibilidade de um curso noturno que atenda a necessidade da classe trabalhadora?”, questiona.

Soares também recorda que, o grupo de alunos que trabalham, geralmente dependem do transporte público e são de  regiões periféricas. “O que auxilia, em muito, a classe trabalhadora são essas bolsas de auxílio que já estão defasadas. Tem uma galera enorme que vem de fora e não consegue bolsas (moradia, transporte, alimentação) e precisa se virar, fazendo bico para sobreviver. Os cortes de bolsas já vem ocorrendo há um tempo e vem o Bolsonaro para tentar cortar o resto. Na minha sala mesmo tem muita gente que sem as bolsas auxílio não estaria aqui na universidade”, diz Soares.

Jhyenne Gomes
jhyennegomes@gmail.com
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