23 dez “A dificuldade é lidar com a forma como cada governo se relaciona com a cultura”
por Lucas Ribeiro
As políticas de incentivo à cultura são sempre ponto de intenso questionamento ao se debater o orçamento público, seja no âmbito municipal, estadual ou federal. Para o ator, diretor e produtor de teatro, Ricardo Augusto, do grupo Trupe de Truões, o risco principal é que, não sendo políticas de Estado, elas terminam por ser políticas de governo. Isso faz com que, a cada quatro anos, elas se modifiquem, de acordo com a forma como o novo mandatário entende a importância da cultura.
O ator defende que as políticas de incentivo sejam compreendidas como uma parceria. “O governo não está doando gratuitamente recursos para artistas, coletivos ou instituições que trabalham com cultura. É uma parceria entre o governo e a sociedade civil, em que a sociedade civil assume para si a responsabilidade de realizar ações que o governo sozinho não consegue fazer”, explica.
E foi através desse tipo de parceria que o grupo de teatro uberlandense Trupe de Truões estreou, no mês de dezembro , o espetáculo MBaé’tatá (pronuncia-se Boitatá), com apoio do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PMIC). Foram três apresentações gratuitas em instituições sociais da cidade, nos dias 12, 13 e 14 deste mês, seguidas de um debate com o público que conferiu a produção. .O espetáculo conta uma história conhecida no folclore brasileiro.
Em conversa exclusiva com a Conexões, Ricardo Augusto, nos contou sobre a experiência da parceria com políticas públicas de incentivo à cultura, o cenário artístico local e também falou um pouco sobre o enredo da peça. Confira a entrevista com o artista.
Conexões: Como surgiu a parceria entre a Trupe e o PMIC? Esse é o primeiro projeto de vocês que conta com apoio de políticas de incentivo à cultura em Uberlândia?
Ricardo Augusto: Esse não é o primeiro projeto que a Trupe tem aprovado no Programa Municipal de Incentivo à Cultura. A gente já participou do incentivo fiscal, mas na maioria das vezes a gente solicitou o recurso na categoria do fundo municipal de cultura. A parceria sempre surge a partir da inscrição no edital. É o Conselho Municipal de Política Cultural que delibera sobre as regras do edital e sobre a própria lei do PMIC. A Trupe participa deste Conselho, às vezes ocupando cadeiras na área de teatro ou de espaços independentes e produção cultural, ou mesmo participando das reuniões como representantes da sociedade civil, tentando contribuir para que essa política pública seja cada vez mais consolidada. O PMIC é um dos programas municipais de incentivo à cultura mais consolidados, mais antigos, já de muitos anos consecutivos. Essa parceria é fundamental, não só para a gente, mas para os artistas daqui da cidade de Uberlândia.
Conexões: Sobre o que conta o espetáculo? Por que a escolha dessa história?
R.A: O espetáculo conta a lenda do Boitatá, uma lenda do folclore brasileiro. Existem várias versões, mas ela surge de uma manifestação de um fenômeno natural das florestas brasileiras que é o fogo-fátuo. A decomposição de minérios ou de restos de planta e de animais entra em combustão e as pessoas vêem uma bola de fogo azul, laranja e amarela. Esse fogo aparece de várias cores no meio da Floresta. A partir disso, as pessoas foram criando o imaginário do Boitatá, relacionando esse fenômeno natural. A primeira vez que se ouviu falar dele foi logo depois da chegada dos portugueses no Brasil. Tem uma carta [de Pero Vaz de Caminha] que conta sobre as primeiras impressões do Brasil e eles falam desse Boitatá, que era um ser cultuado pelos índios. [A carta] cita essa representação do fogo-fátuo. Essa lenda tem várias versões e a mais conhecida é a de que houve um momento no mundo em que aconteceu um grande dilúvio em que muitos animais morreram afogados. Uma cobra que vivia debaixo da terra saiu, logo depois desse dilúvio, com fome, e encontrou só os corpos desses animais e começou a comer os olhos deles. A cada olho que ela comia, seu corpo ficava transparente e seus olhos viravam olhos de fogo. Em algumas partes do Brasil, contam que, na verdade, é uma cobra com corpo de fogo, em outros lugares, é uma cobra transparente com olhos de fogo. Existem outras versões mas essa é a mais comum a todos. A trupe faz teatro para infância e juventude. Esse é um espetáculo para toda a família, e pensamos sempre em um espetáculo que provoque a criança e as pessoas a criarem junto conosco. Esse espetáculo trata desse tema, mas sem trazer nenhuma lição de moral. Contar a lenda do boitatá já é, por si só, abordar a temática.
Conexões: Pode nos contar um pouco sobre o espetáculo? Quem assina a produção e direção? Quantos atores compõem o elenco?
R.A: A gente conta a história do Boitatá dividida em três blocos: no primeiro bloco numa intervenção, é um espetáculo de rua, para ser feito na praça ou espaços alternativos. Então, o primeiro bloco a gente faz em pernas de pau com três figuras que representam a mãe natureza, como se elas estivessem também fugindo de uma floresta em chamas. E elas criam o Boitatá para defender a natureza contra esses ataques. Num segundo momento, a gente faz um bloco musical onde canta várias canções que remetem a essa lenda e faz um jogo de adivinhas com o público. E, no terceiro bloco, são os benzedeiros: três velhos que contam a experiência deles de encontro com esse ser da floresta e, também fazem benzeções para se proteger, para se curar de um ataque de Boitatá e coisas do tipo. É um espetáculo de criação coletiva. A direção é dos próprios atores. São três atores em cena: eu, Cássio Machado e Ronan Vaz. A gente atua e dirige o espetáculo e a realização e produção é da Trupe de Truões.
Conexões: Tiveram dificuldades em conseguir apoio dos programas de incentivo à cultura em Uberlândia?
R.A: O Programa Municipal de Incentivo à Cultura de Uberlândia é um dos mais antigos do país e ele é bem estruturado. Como dinâmica de qualquer governo, a sociedade civil se organiza e se mobiliza diante de alguma decisão equivocada ou alguma decisão que não atenda a necessidade da sociedade civil e dos agentes culturais. No PMIC deste ano, correspondente aos projetos que vão receber recursos para o ano que vem, o resultado final não atingiu o valor máximo de recurso que estava previsto para os projetos. No fundo municipal ficaram quase 900.000 reais sem serem distribuídos em um incentivo fiscal, pouco mais de 2 milhões – de acordo com a Secretaria. Isto porque os projetos não atingiram a pontuação mínima para essa aprovação. E isso é bem suspeito, porque muitos projetos são de continuidade, de produtoras ou de artistas que têm experiência no trabalho com projetos culturais. [São] projetos que foram, inclusive, reorganizados, considerando o parecer da última aprovação no PMIC. Isso é um exemplo de que a gente tem que ficar atento para que a política pública seja cumprida tal qual foi previsto. De forma geral, há um outro problema que é com relação à Comissão de Análise e Seleção [CAS]. A comissão é feita por eleição de pessoas de Uberlândia, da sociedade civil, que se candidatam para ficar durante dois anos analisando os projetos. É sempre delicado, porque uma pessoa que se candidata a essa função deveria ter experiência na área ou capacidade técnica para avaliar projetos, mas é muito comum a gente ter candidatos que não têm experiência em gestão de projetos, que, às vezes, nunca escreveram um projeto e que se apresentam na eleição como um candidato que quer aprender sobre. É muito delicado pela responsabilidade de alguém que assume esse lugar. A Comissão de sempre é uma questão no PMIC: pela forma como a própria Secretaria compõe uma comissão paritária, metade da sociedade civil, metade da Secretaria Municipal de Cultura. As reuniões são fechadas, apesar de já ter havido a solicitação da sociedade civil de acompanhar. Então, a CAS é uma questão que sempre surge no Conselho e já foi pensada a possibilidade de terceirização para que pessoas de outras cidades, especialistas nisto, possam se candidatar – mas ainda estamos nessa estrutura. E [a questão] do recurso, [pois] o Sistema Nacional de Cultura não foi implementado em todos os municípios do Brasil. Há um levantamento feito pela Rede Nacional de Pontos de Cultura de que aproximadamente 4% das cidades brasileiras conseguiram se integrar ao Sistema Nacional de Cultura.
Conexões: E Uberlândia atende aos requisitos para essa integração?
Aqui em Uberlândia, a gente atende os quesitos com a exceção do percentual que deveria ser destinado à cultura. O Sistema Nacional propõe que 2% do recurso total do município seja destinado à cultura. Aqui nunca chegamos a essa porcentagem. É esse orçamento total destinado à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo que define o recurso que vai ser utilizado no próprio Programa Municipal de Incentivo à Cultura. São duas questões aí [sobre o PMIC]: o recurso que é sempre baixo para a demanda que a cidade possui e essa questão da CAS, que é delicada na composição, tanto da sociedade civil como dos funcionários da Secretaria Municipal de Cultura, onde nem sempre quem compõe essa comissão tem a capacidade técnica para ocupar esse cargo.
Conexões: Vocês fizeram três apresentações como parte da contrapartida social do projeto. Como foi a recepção do público?
No PMIC, a gente tem duas coisas que são a proposta de ação cultural do projeto e a contrapartida social, são coisas distintas. No nosso caso, a ação cultural proposta era criação em si e a realização de três apresentações. A contrapartida social é algo que é complementar à ação cultural. A nossa ação de contrapartida social proposta foram dois debates com o público após a apresentação. Do nosso ponto de vista, a recepção foi muito boa, no sentido de que nesse debate a gente conseguiu perceber o ponto de vista das crianças e adolescentes que assistiram. Suas considerações, perguntas e o próprio engajamento deles durante a apresentação. Então, a nossa ação cultural era realizar a montagem e levar ao público três apresentações e a contrapartida social era a realização de dois debates sobre o espetáculo com um público de duas instituições sociais.
Conexões: Como artistas, qual a importância dessas leis de incentivo para o desenvolvimento de ações como esta? Sabemos que fazer teatro no Brasil é algo muito difícil, que existe, muitas vezes, a falta desses incentivos para a produção. Como vocês driblam isso para entregar espetáculos tão bem produzidos como os da Trupe?
Atualmente,a Trupe utiliza todos os mecanismos de incentivo possíveis dentro da nossa realidade, trabalhamos com incentivo federal, estadual e municipal, tanto incentivo fiscal como fundos. Também realizamos ações diretas, como a escola de teatro da Trupe, aula de teatro em escolas particulares, venda de espetáculos para instituições como Sesi, Sesc, Itaú cultural, venda de espetáculos para escolas, para prefeituras, participação em festival. Então hoje, na realidade da Trupe, e de quem trabalha com teatro, é um pouco essa: ter que acessar muitas possibilidades de receita para conseguir montar um quebra-cabeça que dê conta de arcar com os gastos para a manutenção do grupo. Uma dificuldade encontrada até aqui é que a gente não tem consolidado o Sistema Nacional de Cultura. [O Sistema] chegou quase a ser consolidado, mas após o golpe durante o governo da presidenta Dilma, com a entrada do Temer, esse Sistema começou a não ter tanto foco e não conseguiu finalizar esse processo. O sistema abarcou a realização de conferências municipais, estaduais e federais passando por todos os estados brasileiros na perspectiva de ouvir os artistas e produtores de cultura e entender a diversidade do país e a forma de produção de cada lugar, de cada artista, tentando acolher essas especificidades. O risco sempre é esse: , não sendo uma política de estado, ela se torna uma política de governo e, cada governo que entra, dependendo da forma como ele entende a importância da cultura, pode desfazer e desmontar tudo o que foi conquistado até ali. Acho que uma dificuldade atual é essa de a gente ainda ter que lidar com a forma como cada governo se relaciona com a cultura e entende a importância dela. A gente entende que é uma parceria. O governo não está doando gratuitamente recursos para artistas, coletivos ou instituições que trabalham com cultura. É uma parceria entre o governo e a sociedade civil, em que a sociedade civil assume para si a responsabilidade de realizar ações que o governo sozinho não consegue fazer. O mesmo acontece na saúde, na educação. Mas é frágil ainda porque a gente está lidando com políticas de governo e não com política de Estado. Nós somos um grupo de teatro profissional que escolheu viver do nosso ofício no interior de Minas Gerais.Temos esse dificultador, porque muitas pessoas associam artistas do interior como amadores.Tem sido, já há muitos anos, um trabalho assíduo da Trupe de trazer pessoas até Uberlândia, de levar o nosso trabalho para outros lugares nessa perspectiva de convencer, por meio da produção que a gente faz, que, sim, somos um grupo profissional sediado no interior do país.
Conexões: Há alguma outra parceria entre a Trupe e outros projetos municipais ou estaduais de incentivo?
Como dito anteriormente, a Trupe acessa os mecanismos de incentivo à cultura nas três esferas: federal, municipal e estadual. A gente estabelece parceria com o Sesc, com Sesi e outras instituições que também têm programas internos voltados para cultura. Aqui, em âmbito municipal, a gente não utiliza só desses mecanismos, dos programas de incentivo à cultura, mas acessa emenda parlamentar, convênios diretos com o poder público e várias outras possibilidades existentes para desenvolver ações culturais com incentivo público.
Conexões: O espetáculo retorna em breve com bilheteria. Gostaria de divulgar as próximas datas para convidarmos o público?
Não tem data certa para as apresentações do espetáculo, mas entre os meses de março e abril de 2023, a gente deve levar ao público o espetáculo MBaé’tatá. E, no ano que vem, também vamos estrear outros três espetáculos: Zapato busca sapato, que é infanto juvenil, criado numa parceria no intercâmbio com artistas do México e de Moçambique. A gente retoma também um espetáculo adulto chamado Infância Roubada. E vamos estrear um solo de palhaço, também em 2023. A melhor forma de acompanhar as atividades da Trupe é seguindo o grupo nas redes sociais. É Trupe de Truões no Facebook, no Twitter, no YouTube, no Instagram e no LinkedIn. Lá a gente costuma divulgar todas as ações que vai realizar, seja de apresentação de espetáculo, de eventos e de oficinas.
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