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A jornada de quem sobreviveu à covid-19

Por Milena Félix e Andressa Marcelina

Ele estava vivendo uma agonia que nunca pensou que ia viver. Se entristecia e sentia muito a perda do filho mais novo, sem parar. “Eu preciso ir vê-lo pela última vez”, pensava. Mas o menino tinha acabado de morrer e o pai não ia conseguir se despedir. Ao passar dos dias, a agonia só aumentou com o luto que perdurava.

— Tudo bem, senhor Flávio?
Ele abria os olhos com dificuldade pela primeira vez em muitos dias. Os médicos tinham acabado de tirá-lo do tubo. Ele se lembrou:
— Ah, então vocês conseguiram me transferir?
— O que? — a enfermeira não entendeu.
— Do Araguaia — ele respondeu.
— Senhor Flávio, o senhor está em Uberlândia, no Hospital Santa Catarina.
Ele estava bem fraquinho, e então compreendeu:
— Ah, é mesmo. Eu estou vendo pelo teto que é um lugar bem diferente.

As alucinações foram o principal efeito que os sedativos causaram em Flávio Júnior Neres Muniz, de 44 anos, quando ficou intubado, por 17 dias, na UTI com covid-19. Ele ficava a maior parte do tempo dopado e uma das principais imagens que sua mente formou foi a da morte do filho mais novo. Também alucinou que estava internado em um hospital perto do Araguaia, e não entendeu quando acordou em Uberlândia-MG, cidade onde mora.

Eram três da manhã. Flávio se levantou e foi para a sala de casa, sentindo uma forte dor no abdômen. Se apoiou, de pé, na janela, e ficou esperando para ver se a dor passava. Depois de algum tempo, sua esposa se aproximou e resolveram chamar o corpo de bombeiros para levá-lo para o hospital.

Os bombeiros não chegaram, e a esposa de Flávio teve que colocá-lo, sozinha, no carro. Ela o levou para a UAI São Jorge, onde ele só foi atendido às 7h da manhã. Às 10h30, Flávio não conseguia mais ficar em pé. Sentia fraqueza e tremia muito. À tarde, foi internado. Seu caso era grave.

Foi assim que começou a jornada de Flávio nos hospitais de Uberlândia, lutando contra a covid-19. Ele havia descoberto, há dois dias, que estava com a doença da qual tanto se prevenia. “Eu pratiquei de verdade o isolamento social. Tudo o que entra em casa é descontaminado antes de ir pra cozinha, calçado de fora é um, calçado de dentro é outro”. A doença piorou rápido em Flávio, que não é grupo de risco. Ele é ativo fisicamente, tem sangue O+ e sempre ficou em casa durante a pandemia. Foram ironias da vida que o levaram a se contaminar e, mais ainda, a quase perder a vida.

A contaminação

Flávio nunca saía de casa durante a pandemia. No mês de fevereiro, por dar muitas aulas online, ele começou a ter alguns incômodos na visão, e sentiu necessidade de ir ao oftalmologista. Não dava para evitar, era essencial. No dia em que foi ao médico, Flávio também foi à ótica, para fazer os novos óculos, que haviam aumentado de grau. Ele expôs os olhos a muitos toques e contatos diferenciados, e acredita que foi dessa forma que aconteceu a contaminação. Passado alguns dias, numa quarta-feira, começou a sentir dor de cabeça.

Diagnóstico

Um analgésico foi o bastante para a dor de cabeça e para a febre, que surgiu logo em seguida. No entanto, mais sintomas começaram a aparecer e a deixar Flávio preocupado. A garganta incomodava, e ele resolveu procurar um médico.O médico percebeu que os sintomas de Flávio eram de covid e receitou o exame. Estava marcado para sábado.

No dia do teste, Flávio acordou cedo, saiu de casa e correu 15 km. Voltou para casa, tomou banho, café, e, às 10h30, foi para a UAI São Jorge fazer o exame. Estava sentindo um leve desconforto respiratório. Passou o dia tranquilo, pois achava que, se estivesse com covid-19, não ia desenvolver a forma grave. À noite, saiu com a esposa e os dois passearam por áreas rurais de carro.. Quando voltou para casa, foi direto para o seu escritório, onde teve acesso ao resultado do exame que confirmou que ele estava contaminado com o vírus.

A internação

Flávio foi internado no dia 8 de fevereiro de 2021, quando os hospitais da rede pública de saúde de Uberlândia estavam com 89% de lotação. Durante seus 17 dias intubado, seu pulmão foi 100% comprometido. Ele usou uma sonda, por onde recebia o alimento, um acesso central no peito, por onde tomava medicamentos, um dreno toráxico, uma sonda vesical e fraldas. Ele não conseguia se mexer, do pescoço para baixo. Flávio perdeu entre 27 e 30kg em menos de um mês. Ele estava irreconhecível.

Durante esse tempo, Flávio viu muitas pessoas morrerem, nos períodos em que acordava da sedação. “Tinha noite que eram três, quatro. Era terrível!”. Em alguns dias, os médicos pensaram que sua situação era irreversível. Mas ele não tinha medo de morrer. “A morte, para mim, não é uma coisa necessariamente ruim. Para mim a morte é um momento de passagem”, reflete. Nesse período, vários amigos e familiares se reuniram em oração por Flávio. “Teve gente que fez missa lá no Sul. Cultos, vigílias, tive amigos do Candomblé que fizeram ações lá também, outros que nem são religiosos.”

A recuperação

Um casal de médicos, em especial, criou afeição e cuidado por Flávio durante seu período de intubação. Um dia, a médica tinha terminado o plantão, e decidiu ver como ele estava. Quando ela escutou seu pulmão, percebeu que havia um som diferente. Resolveram fazer um novo exame, e descobriram que ele estava com pneumotórax, que é uma camada de ar por fora do pulmão, dificultando a respiração. Eles fizeram, então, um procedimento cirúrgico para drenar este ar. O corpo de Flávio reagiu bem, e, a partir de então, ele começou a melhorar.

Ele teve que fazer fisioterapia respiratória, acompanhamento com nutricionista e fonoaudióloga para fazer o desmame da sonda. “Eles vinham com a colherzinha, “essa aqui é uma textura, tal, senhor Flávio”. Outras vezes eles faziam exercícios comigo. Exercícios de biquinho, de mastigação, de abrir a boca, mastigar”, conta.

Flávio relembra como foi sair do tubo de oxigênio: “A transição foi assim: eu cheguei entubado, depois do tubo eu passei para uma máscara de oxigênio. Uma máscara que tem uma bolsinha. E aí eu fazia um procedimento que os fisioterapeutas chamam de VNI (Ventilação Não Invasiva), coloca uma máscara, cobre nariz e boca. Prende ela na sua cabeça e ela faz uma pressão positiva, ela empurra o ar para você. E você que tem que controlar isso. Nas primeiras vezes, a sensação é angustiante. Você sente que está sendo sufocado, só que é extremamente necessário. No meu caso, foi fundamental para me recuperar. Alguns dias eu fiz três VNI, no dia. Aí cada sessão dura uma hora.”

No décimo sétimo dia, Flávio foi transferido para a enfermaria, onde ficaria mais quatro dias, até conseguir alta. Depois, em casa, ele ainda passou um mês na cama, sem conseguir se mexer.

Quando reencontrou sua família, Flávio conta que não conseguia acreditar, mas que estava um pouco confuso mentalmente, o que atrapalhou o momento. Ele estava na cadeira de rodas, no corredor do hospital, quando viu pela primeira vez o filho e a nora desde que tinha ido para o hospital.

O futuro

Flávio tem muitos sonhos. Desde que se recuperou da covid, ele entendeu que recebeu uma nova oportunidade, e decidiu ajudar outras pessoas que estão passando pela mesma coisa. Ele quer fazer um grupo de apoio a pessoas contaminadas pelo vírus. Além disso, ele tem feito terapia para se recuperar dos traumas emocionais que a doença trouxe, além de fazer acompanhamento com a fisioterapeuta da UAI. Ele, que é professor de História e mestre pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU, pretende fazer doutorado na UNICAMP.

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