
11 ago A luta pela decolonização do direito de decidir
Nos últimos anos, a questão da descriminalização do aborto foi ferozmente debatida na porção latina do continente americano. O conservadorismo cristão da América Latina é consequência do violento processo de colonização europeia, e as atuais tensões são decorrentes da ascensão dos movimentos feministas decoloniais na luta contra essas heranças históricas. Dessa forma, ainda que a maioria dos países mantenha as tradições de seu passado violento, a discussão fez com que alguns deles tomassem decisões importantes acerca do tema e, como consequência, trouxessem novas expectativas em relação ao futuro.
No passado, ao sermos invadidos, tivemos nossa cultura defasada e nossas mulheres estupradas. Em virtude disso, atualmente sofremos consequências políticas e sociais, enquanto nossos invasores desfrutam de uma realidade sem pena. Sobretudo, são dois fatores importantes que sustentam a problemática do aborto na América Latina: primeiro, a missão civilizatória cristã — na qual a Igreja Católica, em conjunto com o Estado, impôs padrões e tradições com bases na hierarquia patriarcal; e, segundo, a forma exploratória com que os corpos femininos foram tratados.
Tais fatores dão estrutura para as sociedades latinas contemporâneas porque, embora apresentem em sua maioria Estados laicos, a tradição cultural de essência religiosa age até os dias atuais sobre a forma de enxergar a mulher. Inclusive, vale ressaltar que 40% da população mundial católica se localiza na América Latina e no Caribe. Isso significa que, apesar da desvinculação do Estado com a Igreja, a predominância da religião interfere na vida privada e pública dos indivíduos.
Ademais, a criminalização do aborto não só tira a liberdade de decisão sobre o próprio corpo das mulheres, mas também as incentiva a prosseguir com práticas inseguras. Uma pesquisa feita pela Organização Mundial da Saúde apontou que, entre 2010 e 2014, foram realizados mais de 6,4 milhões de abortos no continente e que 76% deles foram feitos de forma clandestina ou irregular. A partir desses fatos, as feministas latino-americanas afirmam que independente do que as leis decidem, essa é uma realidade comum. Além disso, é dessa forma que a questão se distancia do debate religioso entre o que é certo ou errado, e se configura como um problema social e estrutural de saúde pública, tendo em consideração que o grupo mais vulnerável e sujeito às negligências do Estado é o das mulheres negras periféricas.
A América Latina apresenta uma das piores legislações do mundo: em sua maioria, os países possuem regulamentações ineficazes ou que estritamente proíbem a interrupção da gravidez. Em El Salvador, Honduras, Nicarágua, Haiti, República Dominicana e Suriname abortar é crime e a mulher pode ser presa. Já na Venezuela, Chile, Guatemala, Paraguai, Panamá e, inclusive, no Brasil, permissões são concedidas em situações de estupro ou risco à vida. Enquanto Bolívia, Peru, Equador e Colômbia são passivos em contexto de qualquer dano físico ou mental.
No entanto, existem os países em que o aborto não é crime. Em Cuba, desde 1965, ele é permitido até a décima semana de gestação — e até a décima quarta em caso de estupro — o que trouxe mudanças significativas como a diminuição da mortalidade materna em 60%.
Sendo o segundo a descriminalizar o aborto, o Uruguai o mantinha como motivo de pena em qualquer circunstância até 2012, quando a Lei da Interrupção Voluntária foi aprovada. Assim, tornou-se possível parar com a gravidez até a décima segunda semana por razões pessoais, em situações de risco grave para a saúde, má formação fetal e em casos de estupro. Recentemente, nos últimos dias de 2020, foi aprovada na Argentina a lei que legaliza o aborto sob medidas semelhantes às do Uruguai e, apesar da pandemia, as mulheres não deixaram de ir às ruas celebrar a vitória.
O pensamento feminista latino-americano se une ao movimento das mulheres não brancas ao considerar como eixo principal e ponto de partida o racismo e a herança colonial. Compreendemos a narrativa de que a questão do aborto nos atinge de forma diferente quando comparadas às mulheres da porção norte do planeta, uma vez que somos nós que vivemos uma realidade de descaso e precisamos recorrer a métodos inseguros e violentos.
E o Brasil?
Embora tenha tido colonizadores diferentes, o Brasil sofre dos mesmos problemas que os outros países latinos no que tange a problemática do aborto. A legislação indica que qualquer interrupção induzida é considerada crime e a pena varia de três a dez anos. Entretanto, ela não legisla sobre abortos que ocorrem naturalmente e despenaliza, grávida e profissional da saúde, em casos de estupro, situações em que a vida da mulher corre risco ou se o feto for anencefálico – deformação no tubo neural que pode fazer com que o bebê nasça natimorto ou morra depois de alguns dias.
No entanto, mesmo por vias legais, é extremamente difícil conseguir o procedimento no Brasil. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) mais recente estima em 500 mil o número de abortos na parte urbana do país, no entanto somente 1700 são feitos dentro da Lei. Isso acontece porque, ainda que a mulher se enquadre nas categorias permitidas, não há estrutura nem equipes especializadas, e cabe a elas recorrerem a métodos clandestinos e inseguros, assim como as mulheres que não se enquadram nos grupos específicos.
Além da ineficácia da legislação, existe a polarização política que terceiriza o poder de decisão sobre o próprio corpo da mulher. Em especial, as instituições religiosas e os partidos conservadores travam uma incessante batalha para desvincular a discussão do campo da saúde e inserir nela seus valores morais e éticos, desconsiderando a laicidade do Estado e até mesmo os direitos humanos.
Debater sobre o aborto é imprescindível não só para nós, mulheres da América Latina, mas para todos os países da porção sul do planeta — também vítimas dos colonizadores e imperialistas do norte. É preciso entender que os métodos contraceptivos são falhos e que as mulheres não deixam de abortar em função de determinada legislação. Devemos celebrar em conjunto às nossas vizinhas latinas pelas conquistas históricas tão desejadas, mas também traçar nosso próprio caminho em direção a um futuro em que nós, brasileiras, também teremos o poder da decisão.
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