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A pejotização do trabalho e a fragilização das relações trabalhistas

O ato de manter empregados através da criação de empresa pelos contratados é conhecido como pejotização. As relações empregatícias, antes marcadas por pessoa física e empresa, passam a ser um vínculo entre duas pessoas jurídicas. 

Porém, com essa tendência surge também um grande problema: o fim do princípio da proteção. A legislação trabalhista brasileira, criada nas primeiras décadas do século XX, oferecia medidas protetivas ao trabalhador, como a Conexões já explicou nesta animação. Tais garantias sofreram drástica redução depois das reformas trabalhistas implementadas no Brasil desde 2016. No entanto, ao se tornar uma pessoa jurídica, o trabalhador deixa de ter essa proteção e passa a ser entendido juridicamente como uma empresa que presta um determinado serviço e não mais um indivíduo que troca sua força de trabalho por um salário. 

Mas porque a pejotização é um problema? O fator determinante para responder a essa questão é o objetivo de ocultar o vínculo empregatício. As empresas contratam pessoas jurídicas, mas exigem os requisitos da relação de trabalho, como subordinação, pessoalidade e onerosidade. Isso significa que o trabalhador não dispõe de autonomia para o exercício de suas tarefas, da mesma forma que não goza de nenhum dos direitos previstos na legislação trabalhista.

A proposta de se tornar um MEI, sigla que designa os microempreendedores individuais, pode parecer sedutora. O salário é, geralmente, 45% maior que o piso salarial médio. No entanto, ao sujeitar-se a tal condição, os trabalhadores ficam expostos ainda mais à vulnerabilidade que já lhe é imposta ao firmar uma relação trabalhista tradicional, que pressupõe um desequilíbrio de poder. 

Para o empregador, ainda que o valor do salário seja mais alto, a contratação do MEI compensa. Todas as obrigações trabalhistas previstas pela legislação como décimo terceiro salário, horas extras, adicional das horas extraordinárias, férias, FGTS, INSS, aviso prévio, vale transporte e vale refeição saem de cena. Sua única obrigação é destinar o valor devido da nota fiscal emitida mensalmente. 

O resultado é uma relação jurídica aparentemente entre iguais, porém estabelecida entre pessoas com diferenças gritantes. O contratante terá um PJ que desempenha as mesmas funções e obrigações que um empregado CLT, mas sem nenhuma obrigação com os direitos trabalhistas. O contratado receberá o valor acordado, pagará imposto sobre as notas emitidas e não terá garantia de vínculo, amparo em caso de acidente de trabalho ou mesmo da rescisão do contrato. 

Segundo o Ministério da Economia, o Brasil tem cerca de 14 milhões de Microempreendedores Individuais (MEIs) ativos que representam quase 70% das empresas em atividade no Brasil. Nem todos esses são PJs. De acordo com os dados publicados pela Pnad do IBGE, o número de empregados sem carteira assinada no setor privado ficou em 12,5 milhões de pessoas no primeiro trimestre de 2022. 

Os números mostram que as empresas estão adotando a pejotização, ainda que isso ofereça um certo risco jurídico, devido aos benefícios que o empregador tem nesse tipo de contratação. E significa que as pessoas, provavelmente devido à pouca oferta de vagas, se submetem a tais condições. É possível dizer que o salário acima da média funciona como isca e os trabalhadores, sem perceber ou sem opção, aceitam uma relação de trabalho em condições abusivas. 

A pejotização causa uma relação falsamente simétrica, ou seja, passa a impressão de que o contratado é livre e possui a mesma liberdade e poder de escolha que o contratante porém, na prática isso é uma falácia. A relação empregador-empregado sempre foi assimétrica. Inclusive, a legislação trabalhista criada lá no século XX, surge, justamente, por se reconhecer que o empregado é a parte vulnerável da relação e precisa ser resguardado. 

Exigir a regulamentação das profissões, bem como a delimitação da atividade profissional é um dos primeiros passos para que tais problemas não continuem a assolar os trabalhadores. A implementação de políticas públicas que garantam a cada cidadã e cidadão o direito constitucional de exercício livre do seu trabalho em troca de uma remuneração justa e de garantias mínimas deve ser reivindicada por toda a sociedade. Não lutar por essa causa trará como pena a perpetuação, mais de um século após o final do regime escravocrata, de uma cultura que divide a sociedade entre aqueles que podem escolher livremente seu trabalho e os que são obrigados a se submeter a condições degradantes para conseguir garantir sua sobrevivência. A pejotização é uma roupagem atualizada para tal ferida histórica, ainda sem cicatrização.

Blaranis Gomes
blaranissg.ufu@gmail.com
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