
30 nov Alanna Fernandes: o reflexo no espelho
por Lucas Ribeiro
Artista: essa é a definição que podemos dar à ela. Com sensibilidade aguçada e um olhar humanizado e delicado sobre o mundo, Alanna Fernandes compartilha conosco os anseios de sua alma inquieta. Natural de Araguari, ela demorou a entender seu interesse pela arte, embora a sentisse pulsar dentro de seu coração. Ela sempre teve muita afinidade com a música, talvez herdada de seu pai, que tinha diversos cds e vinis e sempre procurava por dvds – a novidade tecnológica daquela época – e por meio dos compilados de clipes que eram vendidos na feira, Alanna percebeu que sentia algo diferente ao assistir as performances dos astros na tela de sua TV. Ela se recorda do pai sempre buscar contatos de outras cidades para conseguir os clipes do Fred Mercury, Bob Marley e de outros artistas das décadas de 70 e 80.
Ela percebe somente hoje em dia, após seu encontro formal com a arte, que essa relação existe desde a infância. Em sua memória todos os seus dias eram os mesmos: assistir Vídeo Show e Sessão da Tarde na casa da avó. Apesar das referências infantis, não veio da família o estímulo para seguir o seu pulsar artístico.
Somente quando chegou à universidade, lugar onde descobriu pessoas diferentes das que conhecia, Alanna admitiu que não queria ser como as pessoas que via na sua cidade natal.
Segundo ela, ao olhar para trás, tem a impressão de que todos eram as mesmas pessoas, gostando das mesmas coisas, vestindo as mesmas roupas. Era tão complexo entender que os demais não estavam tão tocados pela música de Avril Lavigne – que acalentava Alanna de um jeito que ela confessa confundir com paixão.
Era com as canções da artista que ela sentia suas lacunas se preenchendo – algo relacionado ao fato de não se encaixar naquele pequeno universo e, também, por sua orientação sexual. Ela se enfiava no Tumblr e ficava o dia todo lá, lidando com o sentimento de proximidade com aquela atmosfera, muito por conta da diferença que observava entre aquilo e o mundo onde estava ‘estacionada’. Ao se lembrar de quando assistiu “À Espera de um Milagre”, reconhece que um novo mundo se abriu para ela: foi onde teve a percepção de uma experiência estética audiovisual.
Atualmente, está redescobrindo memórias em um curso de escrita criativa que vem fazendo. Um pouco desse processo de autoconhecimento está presente nas questões reflexivas de Espelho, seu terceiro livro lançado pelo Programa de Incentivo à Cultura de Uberlândia (PMIC). A oportunidade de incentivo de obras culturais foi descoberta ainda quando cursava Relações Internacionais, curso em que se graduou na Universidade Federal de Uberlândia.
Com dificuldade para estruturar o conteúdo na hora das provas, a artista começou a escrever poesia sobre as matérias da faculdade e isso chamou atenção de seus colegas que sugeriram que ela escrevesse então um livro de poesia: “Eu comecei a pirar nisso”, conta Alanna. Com a ideia em mente, ela lembra de conhecer Alê Pueblo, um rapaz que vendia livros em congressos e o abordar ‘na cara dura’ pedindo para que ele publicasse seu livro.
A essa altura, segundo ela, o livro não existia. Tudo que ela tinha era um amontoado de poesias, sem um conceito, nem formato. Foi assim, então, que o rapaz a apresentou ao PMIC, justificando que sua editora publicava apenas livros acadêmicos. “Não tinha ouvido falar nada sobre isso, nem sabia que existia e que era possível.”
Na correria e com a orientação de Pueblo, ela se inscreveu no edital do programa: “Na época, a gente precisava levar um arquivo impresso. Gravar no CD todo o material”, recorda.
O primeiro trabalho publicado pelo PMIC, Incômodo Cotidiano, começou a ser escrito em 2013, com inspiração em uma viagem que a artista fez com a faculdade para Ouro Preto. Ela se lembra que, ao olhar a imensidão de coisas que via acontecendo ali, imagens fortes e dolorosas de se ver, que refletiam a desigualdade social, decidiu que tais imagens precisavam ser retratadas com silêncio, sem a loucura do cotidiano.
“A fotografia, por mais que ela grite com você, ela é um silêncio. Você precisa parar para ver uma fotografia. Não tem som, não tem movimento, é só você e a imagem estática. E, mesmo assim, uma foto pode ser tão potente ou até mais potente que um filme de uma hora e meia com diálogos, com trilha sonora, plano, sequência e atuações.”
Com essa ideia executada, mesclando poemas que trazem reflexões sobre tal desigualdade tão incômoda, em 2018, o livro estava pronto para ser lançado. E esse foi o passo inicial para mais duas produções financiadas pelo PMIC.

Alanna Fernandes no lançamento de Espelho – FOTO: Lucas Ribeiro
DIFICULDADES DA ARTE NO BRASIL
Embora sentisse tanto ao observar uma fotografia, Alanna afirma que nunca conseguiu tocar em uma foto desse tipo. A obra do fotojornalista Sebastião Salgado, a quem ela admira muito, é valorizada, justamente pela falta de acessibilidade da arte no Brasil, onde livros desse tipo são caríssimos. Ou são materiais escassos, a maioria em inglês ou francês, não podendo ser compreendidos pela maioria das pessoas. Outro incômodo da artista é a supervalorização da arte estrangeira em relação à produção brasileira.
No contexto da realidade uberlandense, ela afirma que, apesar de termos galerias de arte na cidade, a divulgação é ineficiente e acaba não atingindo todas as classes. “A gente tem que viver falando ‘ai que bom que pelo menos temos’, mas e a função social da arte? Por que essa galeria não está sendo aberta nos fins de semana?”, questiona.
É um processo difiícil participar desses editais que, segundo ela, são complicados e incompreensíveis para uma parcela de artistas. O PMIC, por exemplo, exige que o artista se sobrecarregue durante o processo para lidar com burocracias que nem sempre são do entendimento deles, como fazer contratações, emitir nota fiscal, relatórios, contratar contador e outros processos necessários.
Se, para um artista com mais acesso a esse tipo de informação já é complicado, podemos imaginar a dificuldade para aqueles que produzem arte em realidades menos favorecidas. E essa arte também merece ser valorizada, como Alanna mesmo reafirma: “É um sofrimento. Para escrever um projeto de literatura, por exemplo, você tem que estar com o livro escrito. Se o artista depender das leis de incentivo para conseguir viver de sua arte, ele tem que fazer tudo ao mesmo tempo. Estar escrevendo um livro, um projeto, executando outro, prestando contas. Isso para o ciclo de vida dele funcionar, sem isso ele vai passar dificuldades”.
A crítica da artista sobre a dificuldade de acesso aos editais é justamente a barreira que existe entre eles e a situação de sobrevivência de quem trabalha com arte. “Um artista que faz Serigrafia, ou que é artesão de madeira, ou costura crochê e é analfabeto simplesmente não têm acesso, porque é um processo muito demorado, muito desgastante. [para ele] É muito difícil de entender e muito difícil de executar, são muitos detalhes. A gente escreve um projeto e enviamos geralmente em agosto. Aí o projeto vai ser aprovado lá em janeiro para você começar a executar em maio. Você tem no máximo 8 meses para executar esse projeto. Temos que entender de processo jurídico, prestação de contas…É maravilhosa essa verba, claro. Se não fosse essa verba, muitos projetos culturais da cidade não estariam sendo executados. Mas, é muito trabalho porque o artista recebe direto do projeto apenas 15% do total da verba. Se você pensar que um artista passa tempo escrevendo um livro, vamos supor que por um ano. Depois ele passa dois meses escrevendo o projeto, e em seguida oito meses o executando e prestando contas. É totalmente insalubre, você ganha menos de 100 reais por mês. Não dá pra sobreviver”, desabafa Alanna.
CAMINHOS PARA MELHORIA
Com o dilema entre continuar fazendo arte e focar em outros planos de carreira, a escritora já possui dois livros em processo de produção, mas não sabe se eles serão publicados pela inviabilidade da execução desses projetos via leis de incentivo. Ela precisa conciliar o ganha pão com a arte e, infelizmente, a arte não pode tomar seu tempo do trabalho que a sustenta. Alanna afirma que é uma ‘escolha ingrata’. Embora bata na tecla de que os processos de incentivo à cultura são extremamente importantes, muitos ainda são ineficazes. Sua cabeça vive repensando a escolha pela arte pelo fato de que ela não consegue ser artista em tempo integral.
Então qual seria o caminho para uma melhoria em iniciativas como o PMIC? Para ela, é muito complicado pensar nisso, pois por mais que a burocracia impeça muitos artistas de lançarem suas obras, ela reconhece que a ação lida com uma verba pública e isso exige prestação de contas para a compreensão do gasto daquele investimento. Uma iniciativa importante dentro do PMIC é a criação de oficinas como contrapartida social do projeto, retribuindo para a população a contribuição pública ao programa.
“Podemos pensar em uma realidade alternativa onde tudo são flores ou olhar para a realidade. Primeiro, óbvio, o mais claro de tudo é que precisamos de mais investimento na cultura, mais apoio para os artistas. Precisamos que a nossa profissão seja regularizada, porque quem é artista e não consegue um meio de pagar uma contribuição por mês, não aposenta. Se ele não cuida da vida sozinho, não tem quem cuide. Artistas não têm condições de pagar um plano de saúde, de ter uma carteira assinada enquanto produzem sua arte. Se um artista, por exemplo, sai para montar uma exposição fotográfica em uma galeria e é atropelado, não configura acidente de trabalho. E um fotógrafo que precisa das mãos para tirar foto, se quebrar as duas não tem como trabalhar. Não há resguardo para nós.”
Ela retoma, então, a necessidade do Estado de gerir políticas públicas e acredita que, enquanto não houver uma transformação de consciência do valor da arte por parte de quem já acessou o conhecimento, as coisas serão difíceis de ser mudadas. Sua sugestão enquanto artista é que a implementação das artes no ensino regular seja levada a sério, “talvez com a implantação de uma disciplina de História da Arte no Brasil no ensino regular”, sugere.
ARTE COMO PODER POLÍTICO
“A arte serve para não emburrecer”. É com essa frase que Alanna define o poder político da arte, colocando-a como algo que não permita que as pessoas se deixem levar pelo ridículo, que não se esqueçam que são seres cognitivos. Para ela, a arte e a cultura têm um poder fascinante de tocar o âmago das pessoas, pois elas vivem num mundo cheio de significações racionais. Não é à toa que o Ministério da Cultura foi extinto no governo atual, ela reflete.
E, por falar em reflexo, Espelho, seu livro lançado esse mês, foi selecionado pelo PMIC em 2019 e executado em 2020. Mas devido a Pandemia, chegou ao alcance do público – com um empurrãozinho de uma campanha de contribuição coletiva – apenas esse ano.
Descrevendo a obra como um livro temperamental, Espelho teve seus ajustes finalizados e, agora, em mãos, Alanna agradece a existência do incentivo à cultura mas ainda não sabe ao certo o destino de seus próximos projetos artísticos. Torcemos para que ela continue!
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