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Armar a população não é política pública, é fugir do enfrentamento de um problema complexo

Nos últimos dias, o governo publicou um decreto que prevê alterações na regulamentação da posse e porte de armas. A flexibilização para adquirir e regularizar uma arma de fogo foi uma das propostas da campanha eleitoral para a presidência de Jair Bolsonaro. Entretanto, mesmo sem ser aprovado, o decreto já é alvo de ações que indicam sua inconstitucionalidade.

O advogado é pesquisador Karlos Alves, professor da Faculdade de Direito da UFU, critica o modo como a medida foi implementada. Para ele, “sociedade com crime zero não existe, então vamos colocar em patamares aceitáveis. Como o Bolsonaro faz, outros governos também fizeram, políticas criminais pontuais para resolver problemas pontuais. Não dá para resolver assim. O problema é altamente complexo. Então não vai ser resolvido só com alteração de legislação.” Acompanhe a entrevista completa do pesquisador para a Conexões.

Conexões: Como funciona o popularmente conhecido como “Decreto das Armas” do governo Bolsonaro?

Alves: O decreto existe para regulamentar  o Estatuto do Desarmamento, ele pega uma coisa que está abstrata na Lei e concretiza isso. Por exemplo, se você quiser tirar um porte de arma, você tem que pagar uma determinada taxa. O Estatuto do Desarmamento não estabelece esse valor, aí vem um decreto que vai regulamentar esse estatuto, estabelecendo o valor da taxa. O Decreto não pode trazer uma coisa nova que entre em conflito com a Lei. O grande problema do Decreto do Bolsonaro, e que vai ser discutido no STF, é que ele trouxe algumas inovações no sistema jurídico que conflitam com o Estatuto do Desarmamento. Um exemplo disso: a Lei fala que você tem que provar a necessidade de uma arma, enquanto o decreto contempla 19 profissões em que se presume a necessidade de portar uma arma de fogo. O Decreto presume que essas pessoas têm necessidade de ter uma arma simplesmente por exercer essas atividades. Ele (Bolsonaro) traz algo que devia ser estabelecido através de uma Lei, e isso é um questionamento que o Supremo vai ter que enfrentar. Isso já é objeto de ação direta de inconstitucionalidade, pois o presidente abre, para qualquer pessoa praticamente, a possibilidade de andar armado. Será que a sociedade está pronta para isso? No Brasil, o Estatuto do Desarmamento nasceu com a ideia completamente errada. Ele desarmou a população? É mentira. Ele não desarmou a população, ele estabeleceu uma série de requisitos difíceis de serem cumpridos, mas existe a possibilidade de você ter um porte de arma de fogo. O estatuto contribuiu para nossa sociedade no sentido de reduzir esse acesso, limitar esse acesso. Atualmente, mesmo com o Estatuto, o Brasil é um dos países que mais tem morte por homicídio por arma de fogo. Quando a gente analisa os homicídios praticados no mundo, 35% deles são por arma de fogo. No Brasil, 72% são praticados com o emprego de arma. Uma preocupação é que vai aumentar o número de armas disponíveis no mercado, vai gerar uma série de consequências. Estive recentemente com o Presidente do Clube de Tiro aqui em Uberlândia. A gente tem opiniões completamente diferentes, mas ele me falou uma coisa, que, hoje, uma arma registrada sai na faixa de 8 a 10 mil. Será que são todas as pessoas que terão acesso a isso? Ou mais uma vez eu vou elitizar essa questão? A pessoa que mais sofre com a violência não vai ter acesso ao que o governo propõe para resolver a segurança. Vai continuar excluído, vai continuar marginalizado.

Conexões: Como diminuir a quantidade de feminicídios e de homicídios com utilização de arma de fogo?

Alves: O Brasil é um dos países que mais tem que discutir a questão do feminicídio, a questão da violência doméstica familiar. A resolução desse problema e o das armas está relacionada ao tratamento interdisciplinar delas. Você tem que trabalhar em três esferas. Na da Reforma Legislativa, que deve ser discutida no Congresso através de Lei, não de decreto. Você tem que trabalhar uma questão estrutural do Brasil. Tem que discutir segurança pública, tem que discutir política criminal como um todo, porque a questão da violência é que ela não vai ser resolvida com o decreto, ela vai ser resolvida a longo prazo, com políticas públicas. E o terceiro pilar é um aspecto social. Você tem que lutar para reduzir a desigualdade social e mudar certos paradigmas sociais. São políticas que têm que ser integradas. Eu não estou falando aqui para uma pessoa ou outra não ter arma. Quem tiver necessidade, que tenha uma. Mas que atenda a parâmetros razoáveis. A gente só vai conseguir chegar nisso se discutir a questão. O decreto flexibiliza a comprovação de aptidão técnica. Talvez flexibilizar o trâmite tudo bem. Talvez um trâmite mais enxuto, mas não do jeito que foi feito, praticamente oferecendo no atacado. Nós vamos garantir esse direito a todos ou a gente vai continuar garantindo esse direito só a um grupo? E aí o Ministro-Chefe da Casa Civil, Ônix Lorenzoni, saca a brilhante frase de que as mulheres preferem uma arma do que a Lei Maria da Penha, aí não dá para você levar a sério. Isso não é política pública, isso não é você ordenar o enfrentamento dessas questões.

Conexões: Sobre a inconstitucionalidade que alguns estados alegaram, o que motivou essa parte?

Alves: Simplesmente o decreto desrespeitar o estatuto do desarmamento, que é uma Lei, que hierarquicamente está acima dele. Esse é o principal argumento, mas tem outro. Quando você vai no texto constitucional, artigo 142 e 144, lá fala que segurança pública é dever do Estado. Então você tem essa colocação do dever do Estado enquanto grande gestor de tudo, grande organizador dessa estrutura. O decreto quis dar uma diretriz no sentido de armar,  isso entra em conflito com as disposições do estatuto e o STF vai ter que avaliar e, se for constitucional, mantém o decreto. Se não for constitucional, o Supremo Tribunal Federal retira o decreto de dentro do ordenamento jurídico. E, nesse caso, volta o decreto anterior que vigorava, com regras que são mais rígidas para você ter acesso a um porte de arma.

Conexões: Como você falou, já existe arma na mão da população, principalmente do Crime Organizado. O que poderia ser feito para resolver essa questão estrutural?

Alves: A gente tem que discutir essa questão estrutural. Como que se tem acesso a elas? Como que no condomínio do Presidente da República se acha mais de 100 fuzis? Será que não tenho que aparelhar melhor minha polícia? Será que não tenho que discutir o papel da polícia? Criar um sistema concatenado, organizado? O espaço de fronteira do Brasil é gigante, enquanto o investimento que se faz nela é muito baixo. Essas questões precisam ser discutidas. Não é ficar fazendo populismo com decreto e dedinho com arminha. O que a gente está assistindo hoje é o populismo barato.

Conexões: O que poderia acontecer caso esse decreto seja aprovado?

Alves: Temo por toda a sociedade pelo seguinte: vai aumentar o número de crimes violentos, crimes praticados com o emprego de arma de fogo. As empresas já estão tendo uma demanda muito maior. Tem uma coisa no Decreto que eu achei impressionante. Atualmente, o cidadão tem direito a 50 cartuchos por ano, mas caso seja aprovado, terá direito a mil cartuchos por ano. Eu lembro de Uberlândia com três homicídios por ano, mas nossa cidade já chegou a mais de 200 homicídios por ano, e parte desses homicídios com emprego de arma de fogo. Não tem como dissociar essas questões relacionadas à desigualdade social. Desigualdade social com arma de fogo gera um tipo de violência muito específico no Brasil, que é um país que mata muito. Nosso número hoje beira 30 homicídios para cada grupo de mil habitantes.

Gustavo Ribeiro
gustavovr15@gmail.com
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