03 abr Atendimento a vítimas de violência sexual em Uberlândia cresce 78% durante pandemia
O período de isolamento social afetou diversos setores da sociedade, evidenciando desigualdades econômicas, raciais e de gênero. Alguns dos grupos mais afetados em decorrência da pandemia foram mulheres e crianças vítimas de violência doméstica, que, por se verem obrigadas a permanecer em casa, encontram-se em situação de risco e de extremo contato com o seu agressor. E é nessa realidade que o projeto Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual), vinculado ao HC-UFU, se insere, ao prestar serviço de saúde e apoio psicossocial e jurídico à uma parcela da população não apenas violentada sexualmente, mas historicamente negligenciada pelo sistema de saúde de Uberlândia.
Busca pelo direito em meio ao descaso
Em 2017, ao fazer a preceptoria de alunos do curso de medicina em uma Unidade de Saúde Básica, Helena Paro, ginecologista, obstetra e professora da Universidade Federal de Uberlândia, se deparou com um equívoco que marcou a sua trajetória como médica. Encaminhada de forma equívoca por profissionais da saúde e do serviço social, uma vítima de estupro chega em busca da realização de um pré-natal de uma gravidez que ela não desejava, da qual tinha direito ao aborto.
Apesar do aborto em casos de estupro ser um direito, o próprio Hospital de Clínicas de Uberlândia se negava a fazer esse serviço, por alegar objeção de consciência por parte de todos os funcionários – o que Helena diz não ser verdade, pois era uma das pessoas que compunha o quadro do Hospital e da Faculdade de Medicina e afirmava não ter tal objeção. Vale indicar que a norma técnica Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde de 2011 dispõe que a objeção de consciência não pode ser usada por uma instituição, no caso, o Hospital de Clínicas. Além disso, nenhuma vítima que procure o serviço público para a realização do aborto legal pode ficar sem atendimento adequado, em casos nos quais todos os profissionais se negem a realizar o procedimento, os profissionais podem ser responsabilizados civil e criminalmente de acordo com o Artigo 13 do Código Penal.
Foi a partir desse encontro tão potente e da coragem dessa mulher que surgiu o Nuavidas, “porque ela poderia estar nas estatísticas da maior parte das mulheres que recorrem a um aborto ilegal, por não encontrarem serviços que as acolham ou por desconhecerem seu direito à interrupção de uma gravidez, de uma maneira segura e acompanhada por uma equipe de saúde quando são vítimas de violência sexual”, diz a ginecologista.
O distanciamento social
Com as medidas de lockdown e fechamento das escolas, mulheres e crianças têm ficado mais tempo em casa e, quando vítimas de violência, em convivência com seus agressores, que, na maior parte dos casos, são membros da família.
Em 2019, o Nuavidas realizou 19 interrupções por aborto previsto por lei. Durante a pandemia, em 2020, foram realizadas 34 interrupções, um aumento de 78,94%. E, em 2021, a frequência segue aumentando, pois do início do ano até março, já foram oito casos. Antes, ocorriam cerca de um a dois casos de gravidez em decorrência de violência sexual por mês.
E não há apenas uma ascensão dos números, mas também da violência em si: os relatos têm se tornado muito mais graves. Um exemplo disso foi a história que chocou o Brasil no ano de 2020, da criança de dez anos, grávida do tio no Espírito Santo. Na matéria “Três mulheres, um direito”, da Revista Piauí, são contados detalhes sobre como foi possível, através das orientações de Helena e do protocolo do Nuavidas, realizar a interrupção da gestação da menina capixaba.
Somado à intensificação dos casos, a pandemia também dificultou o processo de procurar um serviço médico e social, principalmente por conta da paralisação do transporte público municipal e estadual, fazendo com que as mulheres e crianças cheguem com uma idade gestacional muito avançada.
Funcionamento e atuação em Uberlândia
O Nuavidas atende pessoas em Uberlândia e em toda região do Triângulo Norte, seguindo padrões internacionais da OMS (Organização Mundial da Saúde) para cuidar das vítimas, independentemente de estarem grávidas ou não. O atendimento é realizado de forma integrada – com médico, psicólogo e assistente social de forma conjunta – e aborda o ser humano como um todo. Dessa maneira, também não se repete a violência contra as mulheres, crianças e adolescentes, ao não fazê-las contar suas histórias várias vezes. O serviço psicossocial visa detectar as vulnerabilidades e as consequências tanto para a saúde mental quanto para a vida social das mulheres, que, muitas vezes, pedem demissão dos seus empregos, após a violência. Já as atribuições médicas objetivam investigar infecções sexualmente transmissíveis ou terminar uma gravidez em decorrência do estupro. Ocorre também a assistência jurídica, que procura sanar as dúvidas das mulheres nos âmbitos do direito penal e do direito civil – de questões relacionadas à pensão, que podem dar autonomia para a mulher ou para a família em relação ao agressor.
Atualmente, o projeto se divide entre duas equipes, que funcionam em turnos distintos. Uma das equipes é direcionada ao suporte de mulheres e adolescentes a partir de 13 anos, composta por ginecologistas, psicólogas e assistentes sociais, atendendo toda sexta-feira pela manhã. Já a outra equipe tem como foco crianças e adolescentes de até 12 anos, formada por pediatras, psicólogas e assistentes sociais, que atendem também na sexta-feira, mas pelo período da tarde.
Apesar da violência sexual ser muito mais frequente contra mulheres, o núcleo acolhe pessoas de todos os sexos. Segundo a professora Helena, quando acontece a violência contra homens, a busca por serviço é ainda menor. Majoritariamente, a assistência é prestada para adolescentes e mulheres, mas, na infância, são atendidos muitos meninos. E, segundo a professora Helena Paro, mesmo não tendo auxiliado ainda nenhum caso de homens trans, eles também têm direito ao aborto previsto por lei.
A consulta no Nuavidas também é uma oportunidade de fazer uma orientação contraceptiva relacionada a métodos mais seguros, como o DIU de cobre, que dura cerca de 12 anos e é disponível pelo SUS.
Políticas públicas contra o abuso
No Brasil, a punição de um crime contra a dignidade sexual – não apenas o estupro, como também o assédio e a importunação sexual – é muito díficil, por deixar poucos vestígios e porque, geralmente, acontece sem testemunha. Sendo assim, o que resta é a palavra da vítima contra a do agressor.
Justamente pelo fato da palavra da mulher não bastar para a justiça, os crimes não são resolvidos. E, talvez, a chave esteja na educação sexual e ensino da igualdade de gênero para as crianças como forma de prevenção. “A violência sexual vem da educação de uma sociedade machista e patriarcal que coloca as mulheres como objeto, para a satisfação dos desejos do homem, em uma tentativa de tirar o poder feminino”, diz Helena.
Além do mais, a médica também não concorda com a ideia punitivista de que o encarceramento resolve o problema. Para ela, dar atenção ao agressor também é importante, através de políticas públicas menos punitivistas e que criem penas alternativas de reflexão, proporcionando um reposicionamento do papel do homem e da mulher na sociedade.
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