03 jun “Cancelamento do Censo beneficia um Governo que não quer mostrar a conta de suas ações”, avalia economista
Após ter sido adiado em 2020, no dia 23 de abril deste ano, o Governo Federal anunciou o cancelamento do Censo Demográfico, que seria realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e estava previsto para outubro de 2021. O corte orçamentário de 96% foi um fator decisivo para a extinção de um dos maiores levantamentos brasileiros, que era também essencial para a elaboração de políticas públicas.
Em entrevista para a Conexões, a professora de Economia do Instituto de Economia e Relações Internacionais da UFU, Ana Maria de Paiva Franco, explica qual é a importância do Censo para a comunidade na prática:
Conexões: O que é o Censo e para o quê ele serve?
Ana Maria de Paiva Franco: O Censo é um levantamento periódico sobre dados da população, que ocorre desde 1872 com a mesma periodicidade. Ele serve de norte para conhecer as características da população brasileira, como ela vive, sob quais condições socioeconômicas, grau de escolaridade da população, grau de analfabetismo, condições de moradia, rendimento das famílias. O levantamento ocorre por bairro e, por ser uma pesquisa tão profunda, exige muito esforço, por isso ocorre só de dez em dez anos. Ele serve de base para elaboração de todas as políticas, principalmente municipais, por exemplo, definir onde colocar escolas.
Os censos populacionais são muito recorrentes nas civilizações, porque eles são fundamentais para nortear políticas de Estados. Recentemente, eu li no Jornal da USP que, segundo a Bíblia, quando Jesus nasceu, José e Maria estavam viajando para a Judéia para responder um censo coordenado pelo Imperador romano César Augusto. Então, o Estado precisa das informações para nortear e verificar para onde as políticas estão conduzindo o país.
Conexões: Quais as consequências da falta da pesquisa para as políticas públicas e para a população?
AMPF: As consequências desse não-levantamento são bastante preocupantes em termos de capacidade de avaliação de uma série de políticas que foram implementadas na sociedade brasileira nos últimos dez anos. Essas políticas visavam corrigir ou amenizar problemas socioeconômicos como pobreza, desigualdade e o baixo nível educacional da população economicamente ativa. Nós ficamos sem conseguir avaliar o desempenho de programas como o Luz Para Todos, as cotas nas universidades públicas, tudo o que foi realizado de 2010 para cá. Além disso, daqui para frente, como o Estado vai se organizar para decidir os rumos das políticas sociais e econômicas? Principalmente no contexto da pandemia, como desenhar políticas específicas para populações que se encontram sem condições de manter um isolamento social? Pessoas que moram em comunidades, em favelas ou em domicílios muito aglomerados precisam de políticas apropriadas. Essas informações podem, até mesmo, conduzir uma fase pós-pandêmica.
De forma resumida, não conseguimos avaliar o que foi feito nos últimos dez anos e não conseguimos desenhar políticas que se mostrariam necessárias daqui em diante. Isso não ocorre por acaso, existem duas condicionantes: a questão da pandemia – que inviabilizaria a pesquisa, já que seriam praticamente 200 mil concursados fazendo a pesquisa de campo, e não teria como proteger esses agentes sem que houvesse uma vacinação em massa – e o corte dos gastos. O Censo sofreu cortes drásticos, assim como outros setores desse Governo, para atender a Lei do Teto de Gastos e cobrir as emendas parlamentares que foram concedidas aos deputados. A sociedade paga um preço alto por escolhas políticas. E isso é uma responsabilidade da população, nós que lutamos e escolhemos os deputados, senadores e os representantes da República.
Conexões: A falta do Censo beneficia alguém?
AMPF: Antes de ocorrer o corte, já havia um direcionamento de que ele seria enxugado – esse foi o primeiro sinal desse novo Governo. E, na ausência de dados, ocorre um apagão de informações. Em uma era de fake news, em que as pessoas se informam por WhatsApp, nós temos muito poucos instrumentos para tentar mostrar a realidade que só os dados revelam. Os dados são essenciais para a contraposição de ideias pré-colocadas e preconceituosas sobre como está o estado de uma determinada sociedade em um período de tempo. Quando não temos acesso a eles, ficamos à mercê de discursos, de histórias interpretativas. O cancelamento do Censo beneficia um Governo que não quer mostrar a conta de suas ações em termos de assistência social, investimentos na educação e na saúde. E beneficia aqueles que querem trabalhar com o obscurantismo, sem deixar que os livros de história registrem os dados. Isso tudo é muito arriscado para a democracia, estamos vivendo em uma era de desinformação muito grande, o que privilegia aqueles que exploram a ignorância das pessoas.
Conexões: Esse corte, que consequentemente inviabilizou o levantamento, foi feito por mero descaso e falta de planejamento dos gestores ou foi feito de forma proposital para que de fato não houvesse o Censo?
AMPF: Eu acho que houve um casamento do acaso com o útil em um momento de crise política. O Governo precisava de dinheiro para agradar a base, o que coincidiu com a situação de pandemia e levou a esse corte orçamentário. Só que isso representa um ato simbólico muito maior do que um ato técnico, é um tiro no peito da ciência, que vem sendo negada de várias formas: seja prescrevendo medicações sem comprovação científica, seja não mantendo o compromisso com a verdade. O Censo é um compromisso histórico com a sociedade brasileira, e esse contrato social não foi mantido. Eu não sei se o cancelamento foi intencional, mas com certeza foi muito útil.
Como economista, o que mais me causou indignação foi ouvir a equipe econômica anunciando que, devido aos cortes, não havia orçamento e que isso só seria discutido posteriormente. No meio dos economistas há uma certa fantasia por parte dos colegas de que o Ministro da Economia Paulo Guedes, por ter formação nos Estados Unidos, merece uma credibilidade técnica e, por isso, ele vem sendo muito blindado. Ele nem sequer compareceu no anúncio que a equipe econômica fez sobre a descontinuidade do Censo, para mim, isso é uma inversão completa do que se espera do compromisso de um economista com a política pública. Nós nos baseamos em dados, previsões e avaliações são fundamentais, então como que um ministro lava as mãos e não luta pelo Censo? Ele não dar nenhuma palavra de defesa pública pelo Censo foi um momento muito triste em termos de profissão do papel do economista para a condução de políticas econômicas e sociais.
Conexões: Em entrevista à BBC, a geógrafa e membro da direção executiva da Assibge (Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE), Manuela Alvarenga, disse que, se o Censo é feito de forma precária, o país perde credibilidade internacional. Por que isso acontece?
AMPF: O Censo no Brasil é o único no sentido de fazer um levantamento sobre renda e analfabetismo da população e uma metodologia consistente é crucial para fazer uma avaliação ao longo do tempo. O sindicato apontou que o orçamento para conduzir o Censo com o mínimo de padrão de qualidade estaria em torno de R$250 milhões, e, hoje, ele tem um orçamento previsto em média de R$50 milhões, que inclusive já foi gasto. Os próprios servidores estão com medo do levantamento ser inviabilizado no ano que vem e de só ocorrer em 2023. Se um levantamento precário for feito, há uma quebra na série da mesma forma, não se pode comparar com os resultados passados. Então, acaba ficando um exame incompleto dos problemas no Brasil, que são fome, desigualdade social, baixo nível de capital humano em termos de educação. Um levantamento pobre e de baixa qualidade técnica não serve para avaliar o Estado e nem para compor a série de evolução de indicadores como moradia, saneamento básico e educação.
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