24 nov Consciência de quê?
Com a Comemoração do Dia da Consciência Negra no dia 20 de novembro, surge um burburinho, uma inquietação no meio da população brasileira sobre o porquê desse feriado. Realmente, o fato de não ser feriado obrigatório em todo o país e de, como de costume, não ter tanta repercussão na sociedade, pode causar uma confusão natural no brasileiro, que, diante dela, como diante de qualquer inquietação, será convidado a buscar compreender o feriado e, então, abraçá-lo, se assim o desejar.
Alguns poderiam questionar: de onde surge a necessidade de comemorar a consciência negra num país de maioria preta e parda que vive em uma suposta igualdade? O mito da democracia racial não é novo nessa terra e não é difícil de se eliminar. Esse mito de que todos são iguais e de que não há preconceito algum sob o critério de raça nesse país tão miscigenado se desenvolveu desde que foi abolida a escravatura no Brasil. E esse mito só cresce com o passar dos anos. Cada vez mais medidas de combate ao preconceito racial são consideradas desnecessárias já que “pretos e brancos são iguais hoje em dia”. E, dia após dia, mais desigualdades são veladas e ignoradas pelo povo branco, que se põe no lugar de fala dos pretos para dizer que “não tem isso de racismo não”, que “isso é coisa do passado”.
Mas não é e nunca foi. Tanto o racismo quanto a injúria racial estão presentes na nossa sociedade em massa e com muita força. O preconceito existe e está presente na esmagadora maioria da população. A maior forma de expressão do racismo atualmente é a desigualdade – social, econômica, de oportunidades, de visibilidade e do tratamento da imagem. Segundo dados do IBGE, a taxa de analfabetismo entre brancos é de 4,2% e entre negros de 9,9%. O rendimento médio de todos os trabalhos entre brancos é de 2814 reais e entre negros é de 1570 reais. Dentre as 1835 crianças que trabalhavam, em 2016, 35,8% era branca e 63,8% era negra. A taxa de desocupação entre os brancos era de 9,5% e, entre negros, de 13,6%.
O negro não tem grandes oportunidades de ascensão social, como afirma o professor Otair Fernandes, coordenador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Leafro/UFRRJ), em entrevista cedida à Agência IBGE: “A questão da escravidão é uma marca histórica. Durante esse período, os negros não tinham nem a condição de humanidade. E, pós-abolição, não houve nenhum projeto de inserção do negro na sociedade brasileira. Mesmo depois de libertos, os negros ficaram à própria sorte. Então, o Brasil vai se estruturar sobre aquilo que chamamos de racismo institucional”. Dessa forma, a permanência dos pretos nas classes mais baixas da sociedade brasileira, sem muita esperança de mobilidade, fica clara diante de qualquer análise.
E como essa ideia se perpetua na sociedade? Há algumas pistas para pensarmos a respeito. A representação do negro na mídia, por exemplo, é completamente estigmatizada e marcada pelo preconceito: o negro raramente ou quase nunca representa o papel principal – de mocinha ou de mocinho – ou faz propagandas de hábitos a serem imitados. Seus papéis na tv, nas propagandas, nos jornais e, até mesmo nos livros, estão reduzidos e definidos previamente. A imagem construída na sociedade acerca do indivíduo de pele escura normalmente se encaixa em três categorias: do malandro bandido, da mulata sensual e do trabalhador braçal. A colunista Alexandra Loras comenta o assunto em sua coluna “O Negro na Mídia”, na revista Cláudia: “O que vi foi o uniforme branco da babá, o papel da mulher hiper sexualizada nas novelas como a eterna amante que destrói os casamentos dos brancos ricos.”
Outro ponto que merece destaque é o reflexo desses papeis que são apresentados pela mídia na sociedade. O negro é visto com uma quase predominante carga de marginalidade na cultura brasileira – a probabilidade de se temer um assalto diante de um garoto negro mal vestido nas ruas é muito maior do que diante de um garoto branco mal vestido. Negros relatam desconfiança em lojas e outros preconceitos similares em situações do dia a dia. Dados comprovam o quadro: segundo Levantamento Nacional de Informações Previdenciárias (Ifopen), 64% da população carcerária do país é negra. O número de mortes de jovens negros no Brasil é maior do que em regiões em guerra, diz o secretário especial de políticas de promoção da igualdade racial da Presidência, Ronaldo Barros, estas chegam a 70 mil por ano.
Preso em péssimas condições econômicas, com poucas oportunidades de ascensão, sendo vítima de uma imagem estigmatizada e marginalizado na sociedade, o jovem tem medo de ser negro. Há uma grande crise de identidade do jovem que vive o dilema entre se autodeclarar pardo ou preto. Assumir a negritude não é apenas uma ato individual de autoconhecimento e de autodefinição, mas é uma ato político de abraçar e tomar para si toda a carga de uma “raça”, incorporar o ser desenhado pelo racismo e cultuado pelas classes altas, que repetem que não existe preconceito.
O preconceito existe, sim, e está arraigado, está intrínseco e, ao mesmo tempo, escancarado. O negro não é visto como ser humano e indivíduo, ele é um tipo. Um tipo odiado, que merece desconfiança, que merece permanecer com trabalhos braçais, que merece ser mais punido e mais injustiçado. Porque tem pele escura. Porque tem um jeito de viver negro, amaldiçoado. Porque existe quem tem o poder de oprimir e quem é oprimido até mesmo quando se nega que existe opressão.
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