26 maio Desconstruindo estereótipos
João convive com o vírus HIV/AIDS há 14 anos. Foto: Laura Fernandes/Agência Conexões
Quem, à primeira vista, ouve falar em HIV/AIDS e sobre o contágio da doença, geralmente, associa à uma vida de extravagâncias, noitadas e extrema exposição. Mas, nem sempre, esse comportamento se enquadra a tantos soro positivos e aidéticos existentes por aí. A Conexões pôde conhecer melhor a história de um personagem que contradiz a impressão inicial de muitas pessoas têm quando se trata desse assunto. Em respeito à sua identidade, aqui o chamaremos de João.
João tem 48 anos e há 14, completados este mês, convive com o vírus HIV. Sempre foi uma pessoa muito reservada, tomava todos os cuidados com seu corpo e levava uma vida tranquila. A partir de certo tempo de relacionamento, alguns casais, passam a não fazer o uso do preservativo, o que, muitas das vezes, pode não ser a melhor escolha.
Ele tinha 34 anos quando tudo ocorreu. Era pai de três crianças e há pouco tempo tinha terminado seu último relacionamento. “Eu me contaminei em um casamento. Eu conheci uma pessoa. Iniciamos sim com preservativo, mas, como todo casal, depois de um tempo a gente para. E foi o que aconteceu.” Após, aproximadamente, oito meses de relacionamento, seu parceiro lhe deu a notícia. “Eu preciso te contar uma coisa muito séria, eu não posso mais conviver com isso”. À essa altura, João já estava contaminado.
O depois
Hoje a doença já é popularmente conhecida, há campanhas de conscientização, ampla divulgação sobre métodos de prevenção e tratamento. Mas há 14 anos ela ainda não tinha grande visibilidade. João alega que faltava entendimento sobre o assunto, mas que o pouco que ele sabia o motivava a procurar um tratamento e reverter toda essa situação. “De primeiro momento eu não tive medo de morrer, porque eu sabia que eu poderia me cuidar. E também não tinha medo de preconceito, como eu nunca sofri preconceito”
Quando João descobriu que era portador da doença, estava separado de sua ex-mulher e já tinha três filhos pequenos. Ele alega nunca ter tido medo de enfrentar aquela situação, mas que, por um momento, passou por sua cabeça “o que fazer? O que eu deveria fazer?”. Foi difícil para ele conseguir conciliar tudo aquilo que acontecia naquele instante, mas, logo no dia seguinte, sua primeira reação foi procurar o posto médico, se informar melhor sobre o assunto e tomar todas as medidas necessárias.
Ao relembrar essa situação, João transmite em suas palavras o quanto foi importante, naquele momento, a atenção e cuidado do profissional que o atendeu. A prestatividade ao explicar todo o processo, tirar todas as dúvidas e passar a tranquilidade que, naquele instante, era o que mais ele precisava.
Após os procedimentos iniciais, foi marcada a primeira consulta, e João passou a tomar medicamentos apenas três anos e meio depois. A forma como ele recebeu e encaminhou a situação contribui para a ausência constante de remédios. “Existe uma linha que define as pessoas, e uma das linhas que nós seres humanos temos que ter cuidado é com a nossa mente, que a gente mesmo cria […]. Eu não adoeci porque eu me cuidei. E pra você melhorar não é só remédio que te cura. Sua mente também, você tem que estar […] internamente bem. Daí se você estiver, você vai ter um contrapeso ali, que vai te ajudar nos dois lados. E foi o que aconteceu comigo”.
Família
Mesmo que por pouco tempo, ele conta que se arrepende de ter segurado consigo tudo isso, porque existiam pessoas que poderiam ter lhe ajudado naquele momento. Conta que guardou para si durante alguns dias, até que tudo se acalmou. Foi então que deu a notícia a sua família. Ele lembra que seu filho caçula tinha sete anos de idade. Todos ainda eram muito jovens, então o grau de complexidade de tudo aquilo era grande, entender toda essa situação era novidade para todos. João diz que procurou, primeiramente, deixar claro o que estava acontecendo. “Eu expliquei. Olha, não morre, não mata. A coisa não é assim. Eu vou cuidar de vocês da mesma forma que eu cuidei, cuidarei de tudo”.
A forma como todos reagiram à notícia foi totalmente receptiva. Todos o apoiaram e contribuíram bastante no momento delicado. João compreende a forma como tudo isso aconteceu, a abertura que ele conseguiu junto a sua família, como algo que proporcionou a liberdade de se discutir os mais variados assuntos entre eles. Houve uma construção maior de cumplicidade e segurança.
O parceiro transmissor nessa época tinha adoecido. Era o início do diagnóstico para João, mas para o companheiro a doença já estava em estágio avançado. Eram dez anos vivendo como soro positivo. Além da não adesão ao tratamento e, consequentemente, a ausência de medicação, por fim, vieram as doenças oportunistas, como a Hepatite C. Seis meses depois , o, até então, parceiro veio a óbito.
Posicionamento
João soube que estava infectado pelo vírus depois de oito meses de relacionamento, e o parceiro que o transmitiu já era soro positivo há cerca de dez anos. Na maioria de casos como este, o infectado culpa o transmissor, julga que este sabia e não disse nada, mas esquece de avaliar o seu comportamento e sua posição enquanto sujeito que responde por seus atos.
Fugindo mais uma vez da generalidade e posicionando contra este tipo de argumento, João aqui coloca-se como responsável por tudo o que aconteceu. “Eu fui sacana comigo. A gente não pode procurar culpas e culpados. O grande problema é esse, é que as pessoas se revoltam porque buscam culpados. Não. A culpa foi minha. Eu sou responsável por minha vida. Eu tinha que cuidar de mim mesmo. Se eu não cuido de mim ninguém vai cuidar.”
João comenta que muitos dizem que o parceiro tinha o dever de lhe contar, em respeito à confiança de sua parte para com ele. Sobre isso, o perfilado apenas afirma: “não, não tinha obrigação de me contar, eu tinha a obrigação de me cuidar. A gente confia, ou seja, a gente é obrigado a pagar por nossas escolhas. Eu que busquei isso para mim”.
Aprendizado
João acredita que o motivo de tudo isso ter acontecido foi uma forma de preparação para o que ele enfrentaria mais adiante. Um de seus filhos, aos 21 anos, descobriu que também tinha contraído o vírus. Caso o perfilado não tivesse passado por aquilo, não saberia como auxiliá-lo. Ele conta que o fato de já ter passado por tudo o que passou o ajudou bastante no amparo ao filho. “Eu já sabia a medicação, como agir, porque foi eu que levei ele ao posto, lá no Herbet para fazer os exames, a primeira consulta e tudo mais”.
Herbet de Souza é o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais.
Suporte
João afirma que, no momento em que descobriu que era soro positivo, conseguiu visualizar, em Uberlândia, todo o suporte necessário, tanto em relação ao atendimento e acompanhamento, quanto a distribuição de remédios para o tratamento. Hoje, o suporte da cidade diminuiu. Segundo João, a questão não está relacionada aos profissionais envolvidos, mas sim à administração municipal, que não tem dado ao Herbet de Souza o suporte necessário para que eles continuem fazendo o trabalho que realizavam antes.
O fato de Herbet de Souza ser um espaço especializado no tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, AIDS e hepatites virais, o que, de certa forma, delimita o seu público. As pessoas que procuram o ambiente, provavelmente, já são portadoras de alguma das doenças ou estão à procura de detectar se houve a contaminação. João explica que tal fator interfere prejudicialmente no tratamento de vários pacientes que, devido ao risco de exposição, desistem do procedimento de medicação.
As pessoas que estão vulneráveis à exposição, João, como associado e membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo e Convivendo com HIV/AIDS, orienta e encaminha ao Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC/UFU), que restringe a exposição, uma vez que não se trata de um centro especializado em doenças sexualmente transmissíveis. No espaço os profissionais atendem aos mais variados tipos de patologias, não restringindo-se às DSTs.
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