Observatório Luminar
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“É preciso continuar enfrentando a vida, mesmo com todas as mazelas”

Desde fevereiro de 2020, a pandemia de COVID-19 trouxe ao brasileiro um novo desafio: a convivência diária com o luto. O vírus que levou cientistas a travarem uma luta contra o tempo na busca por uma vacina, também obrigou o país a introduzir uma série de providências e políticas públicas para seu combate, como contamos em outra reportagem aqui na Conexões. Porém, as medidas tomadas, muitas vezes contraditórias, não foram totalmente eficazes.

Até o momento do fechamento desta reportagem, foram divulgados mais de 21,7 milhões de casos e 603 mil mortes causadas pelo vírus. Quando esse número apenas cresce, durante dois anos, sendo estampado em manchetes de jornais e repetido insistentemente na televisão, para alguns ele acaba por se tornar exatamente isso, um número. Mas ele trata de vidas e histórias interrompidas, que deixaram para trás o sentimento de perda, dor e luto em dezenas de amigos e familiares. Um luto que, devido às atuais circunstâncias, nem sequer pode ser vivido adequadamente, com a obrigatoriedade de caixões fechados, funerais com horários reduzidos e um adeus que deve ser dito de longe, após, muitas vezes, a distância já ter sido imposta durante o período de isolamento obrigatório da doença.

Para falar sobre isso, conversamos com o jornalista José Pedro Bezerra da Silva, de 32 anos, que atualmente trabalha na Prefeitura de Uberlândia. O jovem nascido em Ituiutaba-MG, se formou em Comunicação Social na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em 2014, concluiu uma pós-graduação em Redes Sociais, Marketing Digital e Novas Mídias pela Universidade de Araraquara (Uniara), em 2019 e, recentemente, também finalizou seu mestrado em Tecnologias, Comunicação e Educação na UFU, que resultou no projeto Bem Ti Vi.

O Bem Ti Vi nasceu do sentimento de luto vivido por José Pedro e reúne cartas de familiares e amigos de pessoas que morreram devido à pandemia de covid-19 no país. Essas cartas, regadas de sentimentos, mostram que mais do que números, falamos de sujeitos, que tinham uma vida toda pela frente. 

Reprodução Redes Sociais Projeto Bem Ti Vi

Confira a seguir nossa conversa com José Pedro e os detalhes sobre o projeto que vem ajudando pessoas a processarem a dor da perda em tempos de pandemia.

Conexões: Como a pandemia de Covid-19 impactou sua vida pessoal e profissional? 

José Pedro: Acredito que não só na minha, mas na de quase todas as pessoas, né? A vida simplesmente mudou de repente. Sempre gostei muito de viajar, ir em barzinhos e, de uma hora pra outra, fomos privados disso por conta da pandemia. Fiquei aproximadamente seis meses sem ver meus pais e minha família. Profissionalmente, foi um grande aprendizado. Com a missão de comunicar à população os riscos ocasionados pela pandemia da melhor forma possível, vivenciei períodos de muita angústia. Mas acredito que realizamos, em equipe, um excelente trabalho, sempre divulgando os atos, fechamentos, aberturas, investimentos em saúde… Enfim, ao falar com você me passa um filme na cabeça. Foram inúmeros os desafios, anseios e medos durante os últimos 18 meses. Mas, sem dúvida nenhuma, hoje temos a sensação de dever cumprido.  

Conexões: Como sua experiência resultou no projeto Bem Ti Vi?

JP: Eu costumo falar que esse é um projeto que nasceu, literalmente, da dor. Além das minhas experiências pessoais, perdi um primo, no dia 20 de abril de 2021, muito próximo e querido para a doença. No dia 26 de abril, perdi minha irmã. Ainda que a morte da Bia não tenha sido para a Covid, foram dois baques indescritíveis. E me fechei. O projeto já estava estruturado antes disso, porém, foram esses acontecimentos que me trouxeram com força máxima até ele. Foi aqui que percebi que, ao nos fecharmos, as coisas ficavam ainda mais difíceis de lidar, que se compartilhássemos nossas experiências, um ajudaria o outro. O Bem Ti Vi foi fundamental para eu entender que é preciso continuar enfrentando a vida, mesmo com todas as mazelas. 

Conexões: Que aprendizados esse projeto trouxe para sua vida profissional e pessoal?

JP: Inúmeros. Profissionalmente, foi um aperfeiçoamento. Trabalho atualmente com comunicação digital e pude colocar em prática algumas ideias que tinha. Pessoalmente, foi o Bem Ti Vi que me fez entender que a vida é feita de mudanças. Profissionais, de relacionamentos, amizades, familiares, nascimentos e mortes. E que cabe a nós decidir o que fazer com essa dor. E o Bem Ti Vi está aí pra isso: ajudar aqueles que precisam.

Conexões: Como sociedade e individualmente, como você avalia os impactos da falta de viver esses lutos todos que a covid nos causou, direta e indiretamente?

JP: Acredito que esse seja um dos principais impactos. Como disse, perdi um primo para a doença. Não pude me despedir dele, vê-lo. Afinal, somos intrinsecamente ligados à cultura do luto a qual estamos habituados. No caso da minha irmã, foi possível dizer meu adeus a ela. Com o Fre parece que ficou um vácuo, uma falta desse adeus. Portanto, as cartas do Bem Ti Vi se aliam nesse processo: uma forma de dizer o seu adeus. 

Conexões: Você tem recebido retorno das pessoas que compartilham suas cartas no Bem Ti Vi? Como é a recepção?

JP: O meu principal receio no projeto era que não houvesse retorno das pessoas. Eu tinha apenas quatro cartas inicialmente, de pessoas próximas que perderam alguém para a pandemia. Mas, assim que foi lançado, comecei a receber mensagens de muita gente, perguntando sobre o projeto, como faria para participar. Então, hoje, tenho cartas a serem divulgadas, mas trabalho com uma postagem de periodicidade semanal. A recepção foi a melhor possível.

Conexões: O projeto foi o trabalho final do seu mestrado. Você pretende dar continuidade? Quais os planos para isso?

JP: Claro que sim! A ideia nunca foi parar com o Bem Ti Vi. Ele hoje é, pra mim, uma terapia. E vejo o quanto as palavras das pessoas ajudam não só a mim, mas àqueles que acompanham o trabalho. Só dar uma olhadinha nos comentários, as pessoas são solidárias, querem ajudar o outro. Enquanto houver demanda, enquanto houver cartas, o Bem Ti Vi existirá.

Thais Fernandes
thaisfernandsp@gmail.com
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