
30 nov Há avanços nas leis contra violência de gênero, mas é preciso mudar a sociedade
No dia 24 de novembro, a antropóloga, professora, atual presidente da Associação Brasileira de Antropologia e pesquisadora de temáticas relativas à igualdade de gênero, Lia Zanotta Machado, ministrou a conferência intitulada “Medos, Afetos e Poderes de Gênero. Por que ela simplesmente não vai embora?”. A conferência foi parte do III Simpósio Regional promovido pela Organização não Governamental (ONG) SOS Mulher e Família em Parceria com o Núcleo de Estudos de Gênero da UFU (NEGUEM). De acordo com a organização do simpósio, o objetivo do evento foi mobilizar o debate sobre políticas públicas em prol das mulheres e problematizar as relações de gênero em contextos de governos que retrocedem avanços e direitos.
Para entender a atual conjuntura, a Conexões conversou com a conferencista Lia Zanotta Machado.
Conexões: Quais as raízes da cultura machista e da desigualdade de gênero pelas quais a sociedade ainda é pautada?
Lia Zanotta: O machismo advém de uma cultura de longa duração. Considerava-se que mulher honesta era só a mulher de “família”, “direita”, aquela que devia se casar virgem, ser fiel e obediente a seu marido até a morte, zelando sempre pela honra do mesmo. Se a mulher saísse sozinha e bem arrumada, já não era uma “mulher direita”.
Não sou contra a ideia de família, sou a favor da ideia de diversos arranjos familiares, em que todos os indivíduos tenham direitos e que nenhuma mulher seja classificada em categorias. Independentemente de sua vida sexual e amorosa, todas são dignas de respeito. Se pararmos para pensar, observamos que a desigualdade está por toda parte, como na construção de sentido das próprias palavras. Um exemplo é a ideia de homem público que representaria um homem político e a de mulher pública, uma mulher “vadia”. O sentido é construído com base na relação de desigualdade de poder e de gênero.
C: Qual tem sido o papel do estado na elaboração de leis e políticas públicas direcionadas à prevenção da violência contra a mulher?
L. Z.: No momento, precisamos que haja condições de implementação da Lei Maria da Penha, no sentido que exista através da imposição da lei, o encaminhamento efetivo dos agressores a grupos reflexivos e multidisciplinares. Essa medida, na maioria das vezes, é precária e por ora inexistente. Como dito, o que não funciona na lei é a inexistência do encaminhamento aos serviços psicossociais e socioeducativos. Além disso, em alguns lugares também não existem as medidas cautelares às vítimas. Onde a lei é aplicada corretamente, diria que é extremamente eficaz porque não é somente punitiva, é uma lei que tem seu lado reflexivo, que implica em um reaprendizado tanto do agressor quanto da vítima.
C: Quais os impactos e resultados das medidas socioeducativas para agressores e também paras as vítimas?
L. Z.: As pesquisas que tenho feito no Distrito Federal, revelam que agressores e vítimas que passam pelo encaminhamento psicossocial, seja junto ao judiciário ou junto ao executivo, têm melhoras relevantes. Vejo que ao invés de se repensar como reformular a lei, precisa-se pensar numa maneira de aplicá-la corretamente. É necessário que os superiores conheçam determinadas áreas como psicologia, serviço social e antropologia para conseguirem entender sobre desigualdade de gênero e fazer uma escuta ativa dessas mulheres, para que as mesmas possam se defender melhor, se autovalorizar e para que os homens possam refletir sobre a longa duração de uma cultura extremamente machista que foi assentada não só na área social, mas também nas leis. Os códigos civis anteriores mantinham a desigualdade entre os gêneros, permitiam castigo físico, etc. Ainda é necessário muito esforço do estado para mudar esse quadro.
C: Qual o papel do ensino e da educação na mudança da problemática?
L. Z..: Antes de pensarmos no papel do ensino, precisamos mudar a sociedade por inteiro, porque senão, a desigualdade que se tem agora, refletirá no âmbito escolar. O papel da educação é educar de uma outra maneira, pensando nos direitos e na igualdade entre os gêneros. Entendendo e respeitando a dignidade humana independentemente do sexo, respeitando o simples fato de que todos somos humanos.
Tudo o que se quis no plano nacional de educação era a luta contra a discriminação sexual, que implica em não discriminar mulheres e homossexuais, porém existem outros tipos comuns de discriminação, como o bullying de meninos contra meninos. Quando pensamos em igualdade de gênero, pensamos também em livrar os homens dessa cultura machista. Manteve-se a luta pela não discriminação racial, mas não manteve-se a luta pela não discriminação sexual e, pior ainda, acusam as teorias de gênero de serem apenas ideologias.
C: Quais os reflexos da lei Maria da Penha na vida da família de um modo geral?
L. Z.: A lei Maria da Penha foi um grande ganho para a sociedade brasileira, já que uma das grandes questões que estruturam a violência no país é ter no interior da família uma convivência íntima com situações violentas e um desrespeito à dignidade do outro. Quando um homem agride uma mulher, ele está agredindo filhos e filhas. A lei é um grande ganho de políticas públicas no que tange à violência.
C: Qual a importância do movimento feminista para a construção das políticas públicas?
L. Z.: Os movimentos sociais nortearam a construção de políticas públicas. Nos anos 1970 diversos movimentos surgiram, como o feminista, o de LGBTs, o de negros, e o ambientalista. Isso fez com que as ciências sociais investigassem e estabelecessem os direitos na constituição. Na constituição de 1988, pela primeira vez, tem-se a igualdade de gênero como direito. Esses movimentos sociais precisam ser cada vez mais fortes e visíveis, porque, na atualidade, aquelas ideias conservadoras não são meramente ideias. O neoconservadorismo tem assento no Congresso, nas frentes parlamentares, na bancada evangélica e na frente agropecuária, são favoráveis à família e contra o aborto, extremamente conservadores, organizados e têm acesso aos meios de comunicação. Se observarmos bem, o problema não é da religiosidade, porque ela é um direito. A manipulação do religioso para instaurar uma moral que não considera todos os humanos dignos, é o problema!
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