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Há avanços nas leis contra violência de gênero, mas é preciso mudar a sociedade

 

“Medos, afetos e poderes de gênero, por que ela simplesmente não vai embora?” foram as temáticas abordadas na conferência ministrada pela antropóloga Lia Zanotta Machado no terceiro simpósio Regional organizado pela ong SOS Mulher e Família em parceria com o Núcleo de Estudos de Gênero da UFU. | Foto: Anatália Amorim 

No dia 24 de novembro, a antropóloga, professora, atual presidente da Associação Brasileira de Antropologia e pesquisadora de temáticas relativas à igualdade de gênero, Lia Zanotta Machado, ministrou a conferência intitulada  “Medos, Afetos e Poderes de Gênero. Por que ela simplesmente não vai embora?”.  A conferência foi parte do III Simpósio Regional promovido pela Organização não Governamental (ONG) SOS Mulher e Família em Parceria com o Núcleo de Estudos de Gênero da UFU (NEGUEM). De acordo com a organização do simpósio, o objetivo do evento foi mobilizar o debate sobre políticas públicas em prol das mulheres e problematizar as relações de gênero em contextos de governos que retrocedem avanços e direitos.
Para entender a atual conjuntura, a Conexões conversou com a conferencista Lia Zanotta Machado.

Conexões: Quais as raízes da cultura machista e da desigualdade de gênero pelas quais a sociedade ainda é pautada?

Lia Zanotta: O machismo advém de uma cultura de longa duração. Considerava-se que mulher honesta era só a mulher de “família”, “direita”, aquela que devia se casar virgem, ser fiel e obediente a seu marido até a morte, zelando sempre pela honra do mesmo. Se a mulher saísse sozinha e bem arrumada, já não era uma “mulher direita”.
Não sou contra a ideia de família, sou a favor da ideia de diversos arranjos familiares, em que todos os indivíduos tenham direitos e que nenhuma mulher seja classificada em categorias. Independentemente de sua vida sexual e amorosa, todas são dignas de respeito. Se pararmos para pensar, observamos que a desigualdade está por toda parte, como na construção de sentido das próprias palavras. Um exemplo é a ideia de homem público que representaria um homem político e a de mulher pública, uma mulher “vadia”. O sentido é construído com base na relação de desigualdade de poder e de gênero.

C: Qual tem sido o papel do estado na elaboração de leis e políticas públicas direcionadas à prevenção da violência contra a mulher?

L. Z.: No momento, precisamos que haja condições de implementação da Lei Maria da Penha, no sentido que exista através da imposição da lei, o encaminhamento efetivo dos agressores a grupos reflexivos e multidisciplinares. Essa medida, na maioria das vezes, é precária e por ora inexistente. Como dito, o que não funciona na lei é a inexistência do encaminhamento aos serviços psicossociais e socioeducativos. Além disso, em alguns lugares também não existem as medidas cautelares às vítimas. Onde a lei é aplicada corretamente, diria que é extremamente eficaz porque não é somente punitiva, é uma lei que tem seu lado reflexivo, que implica em um reaprendizado tanto do agressor quanto da vítima.

C: Quais os impactos e resultados das medidas socioeducativas para agressores e também paras as vítimas?

L. Z.: As pesquisas que tenho feito no Distrito Federal, revelam que agressores e vítimas que passam pelo encaminhamento psicossocial, seja junto ao judiciário ou junto ao executivo, têm melhoras relevantes. Vejo que ao invés de se repensar como reformular a lei, precisa-se pensar numa maneira de aplicá-la corretamente. É necessário que os superiores conheçam determinadas áreas como psicologia, serviço social e antropologia para conseguirem entender sobre desigualdade de gênero e fazer uma escuta ativa dessas mulheres, para que as mesmas possam se defender melhor, se autovalorizar e para que os homens possam refletir sobre a longa duração de uma cultura extremamente machista que foi assentada não só na área social, mas também nas leis. Os códigos civis anteriores mantinham a desigualdade entre os gêneros, permitiam castigo físico, etc. Ainda é necessário muito esforço do estado para mudar esse quadro.


C: Qual o papel do ensino e da educação na mudança da problemática?
L. Z..: Antes de pensarmos no papel do ensino, precisamos mudar a sociedade por inteiro, porque senão, a desigualdade que se tem agora, refletirá no âmbito escolar. O papel da educação é educar de uma outra maneira, pensando nos direitos e na igualdade entre os gêneros. Entendendo e respeitando a dignidade humana independentemente do sexo, respeitando o simples fato de que todos somos humanos.
Tudo o que se quis no plano nacional de educação era a luta contra a discriminação sexual, que implica em não discriminar mulheres e homossexuais, porém existem outros tipos comuns de discriminação, como o bullying de meninos contra meninos. Quando pensamos em igualdade de gênero, pensamos também em livrar os homens dessa cultura machista. Manteve-se a luta pela não discriminação racial, mas não manteve-se a luta pela não discriminação sexual e, pior ainda, acusam as teorias de gênero de serem apenas ideologias.

C: Quais os reflexos da lei Maria da Penha na vida da família de um modo geral?
L. Z.: A lei Maria da Penha foi um grande ganho para a sociedade brasileira, já que uma das grandes questões que estruturam a violência no país é ter no interior da família uma convivência íntima com situações violentas e um desrespeito à dignidade do outro. Quando um homem agride uma mulher, ele está agredindo filhos e filhas. A lei é um grande ganho de políticas públicas no que tange à violência.

C: Qual a importância do movimento feminista para a construção das políticas públicas?
L. Z.: Os movimentos sociais nortearam a construção de políticas públicas. Nos anos 1970 diversos movimentos surgiram, como o feminista, o de LGBTs, o de negros, e o ambientalista. Isso fez com que as ciências sociais investigassem e estabelecessem os direitos na constituição. Na constituição de 1988, pela primeira vez, tem-se a igualdade de gênero como direito. Esses movimentos sociais precisam ser cada vez mais fortes e visíveis, porque, na atualidade, aquelas ideias conservadoras não são meramente ideias. O neoconservadorismo tem assento no Congresso, nas frentes parlamentares, na bancada evangélica e na frente agropecuária, são favoráveis à família e contra o aborto, extremamente conservadores, organizados e têm acesso aos meios de comunicação. Se observarmos bem, o problema não é da religiosidade, porque ela é um direito. A manipulação do religioso para instaurar uma moral que não considera todos os humanos dignos, é o problema!  

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