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LGBT no esporte: cis vs trans ou cis + trans?

Nas últimas semanas cresceu a polêmica em torno de pessoas trans que competem nos mais diversos esportes. No fim de março, o técnico Bernardinho ofendeu a jogadora Tiffany , primeira atleta transsexual a competir no vôlei profissional, em uma partida. O treinador a chamou de homem em um jogo.

No início de abril, a patinadora trans Maria Joaquina, de 11 anos, foi impedida de competir em um campeonato , apesar de ter se classificado. A justificativa da Confederação Sul-americana de Patinação foi que só são aceitos atletas cujos documentos de identidade tenham o mesmo gênero dos competidores.

Para esclarecer um pouco sobre as competições entre pessoas cis e trans, conversamos com o professor Eduardo Saramago, educador físico e mestre em fisiologia pela Universidade de São Paulo (USP). Confira a entrevista.

Conexões: Existe algum tipo de diferença entre uma pessoa cis e uma pessoa trans competindo no mesmo esporte?

Eduardo: Sim. Homens cis e mulheres cis competem em categorias distintas devido às diferenças fisiológicas que influenciam diretamente o desempenho esportivo. Independente da identidade social dos atletas, cada caso precisa ser analisado individualmente do ponto de vista biológico. Diferenças genéticas, fisiológicas e morfológicas de cada sexo biológico influenciam diretamente o desenvolvimento das valências físicas de cada atleta como força, potência, velocidade e resistência que são determinantes para o sucesso na maioria dos esportes. Baseado nisso, as mulheres trans poderiam apresentar vantagens competitivas em relação às mulheres cis e os homens cis apresentariam uma vantagem competitiva em relação aos homens trans.

Conexões: O comitê olímpico estabelece alguma regra para que transsexuais participem de competições?

Eduardo: Até o presente momento, o Comitê Olímpico Internacional (COI) determina que as mulheres trans precisam estar com a quantidade de testosterona abaixo de 10 nanomol por litro de sangue por no mínimo 12 meses que antecedem a competição para poderem competir. O COI determina que homens trans podem participar dos eventos esportivos sem restrições específicas. A cirurgia de readequação de sexo não é obrigatória. O assunto continua em debate e os critérios podem mudar para os próximos jogos olímpicos.

Conexões: Há quanto tempo uma pessoa trans precisa ter feito a transição para competir com outros atletas com igualdade?

Eduardo: Apesar das exigência do COI, não existe consenso em relação a esse tempo após a transição para que exista de fato uma igualdade, pois cada caso é individual e a reversão de algumas características morfológicas e fisiológicas do sexo biológico depende de uma série de fatores, como a idade que iniciou a terapia hormonal, hormônios usados e se a pessoa fez ou não a cirurgia de readequação de sexo.

Conexões: Uma pessoa trans que fez a transição após a puberdade tem alguma vantagem em relação às pessoas cis, principalmente considerando as mulheres cis?

Eduardo: De maneira geral, quando uma mulher trans compete na mesma categoria que uma mulher cis algumas vantagens fisiológicas podem favorecer a mulher trans mesmo que a quantidade de testosterona (hormônio “masculino”) esteja controlada, pois a mulher trans se desenvolveu e treinou na presença de altas concentrações desse hormônio e com baixas concentrações de estradiol (hormônio “feminino”) e esse cenário hormonal durante o processo de desenvolvimento (principalmente durante a puberdade) e treinamento causa alterações morfológicas e fisiológicas que favorecem o desempenho esportivo como aumento da massa muscular, diminuição do percentual de gordura, aumento da massa e estrutura óssea, aumento do percentual de hemácias (células vermelhas que transportam oxigênio) no sangue, entre outras características.

Conexões: Muito se fala que pessoas que nasceram com o sexo biológico masculino e fazem a transição para mulheres trans têm vantagem em relação às mulheres cis. Quando o sexo biológico é o feminino, um homem trans pode ter vantagem em relação aos homens cis no esporte?

Eduardo: Homens trans podem apresentar excelentes resultados esportivos competindo com homens cis, no entanto, quanto maior o nível da competição (Campeonatos mundiais ou Jogos Olímpicos) mais difícil será para esses atletas se sobressaírem, pois as diferenças fisiológicas entre o sexo biológico feminino e masculino podem representar uma desvantagem esportiva para os homens trans, mesmo com terapia de reposição hormonal, pois o cenário hormonal de desenvolvimento e treinamento foi diferente e em alto nível cada mínimo detalhe faz a diferença para determinar quem chegará ao lugar mais alto do pódio. Um fato interessante é que em esportes onde a valência física flexibilidade é determinante para o desempenho esportivo na modalidade (ginástica rítmica e ginástica artística, por exemplo), mulheres cis e homens trans podem apresentar uma vantagem, pois essa valência física é mais bem desenvolvida em pessoas do sexo biológico feminino.

Conexões: Na sua opinião, a polêmica em volta das pessoas trans no esporte tem mais relação com a questão hormonal ou com o preconceito em si?

Eduardo: Acredito que o motivo da discussão sejam as questões hormonais, independente da identidade social de cada atleta. O que gera grande polêmica é se uma competição com mulheres trans e mulheres cis não geraria uma desvantagem para as mulheres cis do ponto de vista esportivo (resultado da competição, classificação para competições internacionais, contratos esportivos).

Conexões: Você acredita que seria válida a criação de uma competição apenas para pessoas trans? Por quê?

Eduardo: Isso contribuiria para segregar esses atletas, também acredito que não haveria atletas suficientes para todas os esportes e categorias. No caso das mulheres trans entendo que uma possível alternativa seria a criação de testes físicos de compatibilidade (testes “funcionais”, similares aos aplicados para classificar atletas paralímpicos em diferentes níveis de repertório motor) complementando o controle hormonal já realizado. Dessa forma, os resultados desses testes físicos de força, potência e resistência poderiam tornar a atleta trans, a partir da comparação dos resultados físicos com a média das mulheres cis do esporte em questão, habilitada ou não para competir com as mulheres cis no mesmo esporte. Como o assunto é relativamente recente e o número de trabalhos científicos sobre o tema é escasso, as entidades esportivas reguladoras ainda estão discutindo sobre o tema, buscando a solução mais justa e equilibrada possível.

Giovanna Tedeschi
gigitedeschi@gmail.com
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