16 set Mais de 5 milhões de crianças não tiveram acesso à educação básica durante a pandemia
A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores, conforme o Artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Como ciclo mais longo da educação básica, o ensino fundamental serve de base para as outras etapas do ensino, sendo essencial no desenvolvimento intelectual e social do aluno.
Entretanto, com o fechamento das escolas e a baixa eficiência do ensino remoto, tem ocorrido uma defasagem no aprendizado de alunos, principalmente da rede pública, desde o início da pandemia. De acordo com o estudo “Perda de aprendizagem na economia”, desenvolvido pelo Instituto Unibanco, esse atraso pode gerar uma perda de R$700 bilhões de renda para esses jovens em suas vidas profissionais, como foi revelado em reportagem publicada pelo Nexo Jornal.
Somado à situação causada pela pandemia, o ministro da educação, Milton Ribeiro, em entrevista para a TV Brasil, defendeu que o ensino de crianças com deficiência deveria ser separado de instituições tradicionais e dos outros alunos, enquanto o país tem 1 milhão de estudantes matriculados na Educação Básica com alguma deficiência, segundo o Censo Escolar de 2016. Para entender o cenário atual, as dificuldades e o futuro da educação de nível fundamental, a Conexões conversou com Lúcia Valente, doutora em Educação, professora de Pedagogia na Universidade Federal de Uberlândia e membro do Conselho Municipal de Educação.
Conexões: Como podemos avaliar as estratégias adotadas para a educação fundamental durante o período de isolamento social causado pela pandemia do novo Coronavírus?
Lúcia Valente: Nós podemos começar falando da falta de estratégia por parte do Governo Federal. Desde o início, o governo não assumiu a responsabilidade no enfrentamento da pandemia, repassando essa tarefa aos governadores e prefeitos. Isso evidencia uma postura muito equivocada do MEC. Nesse contexto, estamos tendo uma gestão marcada pela inação, pela falta de priorização e pela ausência de uma coordenação nacional na área do ensino. Vemos que as iniciativas partem muito mais dos governos estaduais e dos profissionais da educação, do que do próprio governo. As experiências em outros países poderiam ter servido de referência para um planejamento das ações no Brasil, mas, ao invés disso, apenas vivenciamos um negacionismo da pandemia e das políticas de educação. As estratégias adotadas não consideraram desigualdades sociais, o que acabou excluindo grande parte dos estudantes das camadas mais empobrecidas da população. Um estudo da Unicef alerta sobre os impactos da pandemia e revela que, com o fechamento das escolas, quase 1,4 milhões de crianças e adolescentes de seis a 17 anos não frequentaram a escola. A esses, somam-se outros 3,7 milhões que estavam matriculados, mas que também não tiveram acesso às atividades escolares. No total, tivemos mais de 5 milhões de crianças e jovens que tiveram o acesso à educação negado nesse período. Em síntese, podemos dizer que não houve uma política estruturada de desenvolvimento, de material didático e equipamentos. Em âmbito nacional, nada que apoiasse a educação foi estruturado.
Conexões: É possível destacar os principais equívocos e acertos no que tange às políticas de enfrentamento da pandemia pelas escolas públicas? O que poderia ter sido feito a mais?
LV: O principal equívoco foi a falta de planejamento, porque já sabíamos o que estava acontecendo no mundo e, mesmo assim, as políticas públicas durante a pandemia se pautaram na improvisação, o que nos fez perder muito tempo. Estudos têm mostrado que esse déficit de aprendizado levará muito tempo para ser recuperado. Eu entendo que um amplo diagnóstico deveria ser a primeira coisa a ser feita, para que, a partir desse levantamento, fosse possível planejar as intervenções necessárias, além de também ouvir os profissionais da educação. Eu senti um protagonismo muito grande dos professores, que se “viraram nos 30” para poder dar conta da demanda, mesmo sem ter uma direção nacional.
Conexões: Quanto aos recursos públicos destinados à educação, que já vem sendo reduzidos desde a PEC do Teto de Gastos, como essa escassez continuada impactou a educação na quarentena?
LV: Nós temos uma situação paradoxal. Mesmo sabendo da redução dos gastos da PEC, por incrível que pareça, durante a pandemia tivemos recursos financeiros e um avanço com a aprovação da Emenda Constitucional número 108, com o Fundeb [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] permanente. Entretanto, os recursos para a educação não foram utilizados de forma adequada. O problema não foi a redução dos recursos, mas a falta de gestão. O ano de 2020 foi o ano de menor investimento do Ministério da Educação na educação básica. Segundo o 6º relatório bimestral “Execução Orçamentária do Ministério da Educação (MEC)”, o MEC terminou 2020 com a menor verba destinada para a educação desde 2011. A educação básica encerrou o ano com o menor orçamento e a menor execução. Esses estudos mostram que foram gastos apenas R$ 32,5 bilhões com a educação básica em 2020, enquanto em 2010, foram gastos R$ 36 bilhões. Com isso, nós retomamos a questão da inércia e da inação desse governo.
Conexões: Pedagogicamente, é possível dizer que houve algum avanço com a experiência do ensino remoto?
LV: Pedagogicamente, ainda é cedo para avaliar esses avanços, mas posso dizer que, em relação ao ensino remoto, estamos melhores do que quando começamos. Conseguimos ampliar nosso repertório, muitos professores fizeram um alto investimento para melhorar.
Conexões: Diante das polêmicas declarações do ministro da Educação sobre a inclusão de pessoas com deficiência, surge a dúvida: qual foi o impacto do isolamento social para estudantes com deficiência?
LV: Eu me deparei com uma pesquisa feita pela Fundação Carlos Chagas em parceria com a USP, a UFES e a UFABC, que visava identificar os desafios enfrentados pelos professores de educação básica para assegurar o direito de uma educação inclusiva, que é um direito constitucional. Essa pesquisa constatou que, durante a suspensão das aulas presenciais, essa exclusão também se aprofundou. São vários problemas. Por vezes, o único lugar com equipamentos e cuidados necessários é a escola. A pesquisa trouxe dados do Inep, que mostram mais de um milhão de crianças com deficiênca matriculadas em classes regulares. Eles também entrevistaram professores e mais de 70% deles disseram que a alteração da rotina desses alunos se mostrou como uma barreira. Se no ensino regular as crianças já têm dificuldades, imagina no remoto, onde não há um mediador. São barreiras difíceis de serem transpostas.
Conexões: As escolas públicas de educação fundamental estavam/estão preparadas para um retorno seguro às atividades presenciais?
LV: Eu faço parte do Conselho Municipal de Educação, a gente tem visto que as escolas públicas brasileiras – não só de Uberlândia – não têm uma boa infraestrutura. Não há escolas arejadas e com salas amplas para poder contemplar essa situação, precisa ainda avançar muito. Há a necessidade de adaptação, de reduzir tamanho de turmas, de equipamentos e protocolos de proteção. Eu considero importante a formação do professor para receber esses estudantes presencialmente. Os professores também precisam de cuidados, eles também estão adoecendo. Por isso, necessitamos de uma política de saúde de atendimento e de formação desses profissionais. É um desafio muito grande e não acho que estamos preparados, não temos estrutura para voltar sem riscos.
Conexões: Quais medidas podem ser tomadas pelas instituições e pelo Estado para recuperar os conteúdos atrasados?
LV: Precisamos ter uma direção nacional e isso envolve várias questões, como políticas mais amplas, que contemplem os excluídos, e o desenvolvimento de políticas intersetoriais. No Conselho Municipal da Educação, temos colegas fazendo visitas nas escolas e percebendo profissionais fazendo o seu melhor, mas faltam estrutura e recursos básicos. Na escola, nós temos que continuar respeitando os ritmos, precisamos fazer um diagnóstico e fazer uma busca ativa dessas crianças e adolescentes. Também considero necessário ouvir os profissionais da educação. Nos últimos tempos, temos vivido políticas de avaliação que cobram muitas metas, mas vamos precisar deixar isso de lado e partir de uma realidade que já temos para projetar a realidade que queremos. É preciso diagnosticar as crianças que chegam e ver em que nível elas estão, reorganizar as escolas, seguindo a orientação dos profissionais e as referências de outros lugares que já estão corrigindo as falhas. Temos um déficit que terá que ser recuperado e revisto.
Conexões: Que políticas públicas podem ser desenvolvidas para evitar a evasão escolar (que já é alta) nesse momento tão específico que é a pandemia?
LV: É interessante que haja um diálogo muito próximo das Secretarias da educação do município e do Estado com os estudantes e familiares. Ouvi relatos de pais e pessoas próximas sobre o quanto eles perceberam o trabalho do professor, mesmo numa situação difícil. Houve essa aproximação dos professores com as famílias e eu acho que isso precisa ser mais acentuado ainda. É um momento da escola agregar as famílias. Além disso, é preciso trabalhar com as crianças de acordo com seus níveis de aprendizagem e não mais com essa lógica de ano letivo.
Conexões: Na sua opinião, a experiência de fechamento das escolas durante a pandemia alterou a percepção social sobre a educação e seus profissionais? Como?
LV: Pelo que eu tenho ouvido ao acompanhar pessoas e assistir reportagens, os pais estão dizendo que os professores entraram nas suas casas e acabaram ficando íntimos também, isso acontece até no ensino superior. Há um novo olhar em que os pais estão valorizando mais, e a gente espera que essa valorização vá além da família. Temos ainda que lutar muito pela valorização profissional, não só de salário, mas também de condições dignas de trabalho. As famílias têm entendido que [a docência] é uma profissão digna de respeito e eu ainda acredito nisso, tanto que continuo formando professores para o ensino fundamental.
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