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Meu corpo é o quê…?

Corpo: conjunto de um todo. Braço, perna, pé, mão, cabeça. Corpo que é feito, que nasce, cresce, adoece, envelhece, permanece, perece. Corpos de uma mesma espécie, mas vários cheiros, formas, cores, sabores, texturas. Corpo para correr, cozinhar, brincar, escalar, amar, nadar, segurar, cuidar. Para abrigar a alma, ou não. Corpo, enfim, para ser: ser humano.

 

O corpo de uma mulher produz progesterona e estrógeno ao longo de sua existência: o quadril alarga para no ventre conceber outra vida, os seios crescem para que se produza alimento. Corpo de mulher, para trazer ao mundo outro corpo: ninguém mencionou a sexualização. Ainda assim, são violentados e objetificados a cada minuto corpos de mulheres, reduzidos à categoria de mercadoria. Perde-se a condição humana de existência, vira-se objeto de desejo e consumo, descarte rápido: consequência de uma sociedade patriarcal que naturaliza a violência contra corpos femininos.

 

 Foto: Pixabay

 

Numa sociedade patriarcal, a visibilidade dos seios é permitida para o consumo sexual de homens. E apenas isso. Reduzido a objeto, sexualizado a tal ponto que passa a ser proibido e escondido dos olhos humanos, não tem outra finalidade a não ser o prazer carnal. O seio que traz à tona o alimento de outros corpos é ignorado; só existe aquele seio de consumo, efêmero, dominado. Tratado como pecado cristão. No patriarcado, seio que alimenta o filho também é visto como material pornográfico.

 

Numa sociedade patriarcal e heteronormativa, sexo é permitido. Mas só sexo branco, heterossexual, dualista, cujo dominante seja o homem. Qualquer outra categoria sexual é definida como depravada. Depravada e inexistente, inconcebível aos olhos dos cidadãos de bem, da boa família tradicional brasileira, tão preocupada à moral e aos bons costumes. Moral dela; bons costumes dela – e quando lhe convém. Adriana Varejão, autora de uma das obras expostas na exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, retirada do Santander Cultural por iniciativa do Movimento Brasil Livre (MBL), afirma que “buscou jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas”. Em sua obra, representava atos sexuais entre mulheres, negros, asiáticos, entre mais de duas pessoas, entre animais: considerado uma infâmia à arte asséptica e idealista da moral, o fato é que isso existe. E pode ser representado.

 

 Crianças LGBT’s, deuses, interatividade religiosa: em sociedade patriarcal, heteronormativa, branca e cristã, tudo o que foge dessas características é violento, indigerível. E se pratica violência contra tudo o que não lhe agrada. Corpo é sinônimo de sexualidade e sexualidade deve ser reprimida, escondida, exaltada em situações específicas de contrato social e submissão da mulher. O corpo, que perdeu sua dimensão de corpo para virar sexo, tem que desaparecer mesmo existindo. A sexualidade, que perdeu sua dimensão de afeto para virar depravação, também.

 

Exemplos não faltam: em 2015, a cena da novela Babilônia que exibiu um beijo entre duas mulheres idosas – representadas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg – foi duramente reprimida pelo público, sofrendo perda brutal de audiência e sendo obrigada a encurtar sua duração. Um beijo lésbico entre mulheres jovens, no entanto, é exaltado por uma cultura que sexualiza também o amor entre garotas, exclusivo para consumo masculino. É o caso, por exemplo, de Talita Younam e Manoela Aliperti, atrizes da edição de 2017 da novela Malhação.

 

O moralismo não diminuiu nos últimos anos. Pelo contrário, aumentou e ganha cada vez mais o poder executivo. Ainda na última semana, uma exposição cultural do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), sofreu diversos ataques pela interação estabelecida entre uma criança e um homem nu, que apresentava uma releitura da série Bicho, de Lygia Clark. A criança, acompanhada pela mãe, tocou nas pernas do homem – mais tarde, ele foi acusado de pedofilia. Sobre o ocorrido, o prefeito de São Paulo, João Dória, afirmou que “tudo tem limite”. Pelo jeito, tudo tem limite, exceto o moralismo intrigante da classe média.

 

A arte asséptica não discute sexualidade, direito de mulheres, corpo, política, exclusão social. Essa arte é a arte bonita do quadro de Monet: intangível, inalcançável, idealista e que não destrói a família marido-esposa-filho-filha, para deixar o país seguir em ordem e progresso. É arte que não muda a realidade, que não faz revolução e que não discute sentimento. E assim o rico fica mais rico e o pobre fica mais pobre: o tal do progresso, a tal da ordem que destrói a invisível doutrinação comunista.

 

Corpo doente: corpo que não consegue ser corpo, só sexo. Amamentar em público: violação dos bons costumes. Representar artisticamente o sexo: atentado à moral. Interagir com outro corpo: terrorismo aos cidadãos de bem. Mas o caso de Diogo Novais, que ejaculou no pescoço de uma mulher dentro de um transporte público, em São Paulo, segundo o juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto: “não houve constrangimento tampouco violência ou grave ameaça”.

 

“Meu corpo é o quê…?”, perguntou a agredida, Cíntia Souza, ao descer do transporte público. Em tempos de moralismo, o que é um corpo? Os cidadãos de bem parecem concordar: é depravação.

 

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