19 jul MG registra aumento de denúncias de crimes raciais nos últimos três anos
“A gente tem ainda, em termos de relações étnicos-raciais, muito a trilhar” – Humberto Bersani
As denúncias de crimes raciais em Minas Gerais registraram um aumento significativo nos últimos três anos. Em novembro de 2019, o G1 Minas Gerais noticiou quase 300 ocorrências em apenas nove meses, terminando o ano com o registro de 384 denúncias. Em 2020, O Estado de Minas Gerais mostrou que o estado teve mais de um caso denunciado por dia, e o Notícia Preta informou que houve 126 casos de crimes raciais somente nos três primeiros meses deste ano.
As denúncias incluem racismo e injúria racial, porém são crimes diferentes. Enquanto o primeiro trata-se de um crime contra um coletivo, criminalizando preconceitos de origem, raça, cor, idade, com penas previstas de até cinco anos de reclusão, o crime de injúria é contra a honra do indivíduo, ou seja, para sua caracterização é necessário que haja ofensa à dignidade de alguém com base em elementos referentes à sua cor, raça, religião, etnia, idade ou deficiência. Para saber mais sobre os dados das denúncias, como denunciar os crimes raciais e as suas diferenças, acesse aqui.
Em conversa para a Conexões, o professor de graduação em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Helvécio Damis de Oliveira Cunha, afirmou a importância de denunciar os crimes de racismo em delegacias policiais, mas também explicou que falta conhecimento das vítimas para exigir que suas denúncias resultem em uma ação penal de possível condenação. “O que muitas vezes acontece é que a pessoa faz a ocorrência policial e não há a informação de que ela precisa ir à delegacia ou ao Ministério Público posteriormente para manifestar de forma expressa que ela tem interesse que a ação seja promovida pelo Estado. Como as pessoas não têm conhecimento em relação a isso — desde a não informação no momento da ocorrência ou pela dificuldade de compreensão do que é a necessidade de fazer essa manifestação — essas ocorrências acabam não gerando ações penais.” Dessa forma, apesar de haver hoje uma notoriedade maior por parte da imprensa e os números de denúncias aumentarem, a quantidade de ações penais sendo movidas no Ministério Público ainda é pequena.
É indispensável, portanto, que o policial militar explique para a vítima que ela precisa ir até a delegacia depois que a ocorrência tiver sido formalizada, para manifestar o interesse que seja promovida a investigação. “O que acaba ocorrendo, é que como a pessoa não manifestou na autoridade policial, ela não dá andamento no inquérito e fica aguardando essa manifestação”. Mas o ideal, de acordo com o professor, deveria ser a modificação da lei para que a ação penal seja promovida de forma automática, como acontece para o crime de racismo. “Para o crime de racismo há ação pública incondicionada”, explicou o professor. Isso acontece porque o crime de racismo é um crime à dignidade humana e agride um coletivo, podendo ser denunciado até mesmo por anúncios e comerciais divulgados, como ocorreu com o Brasil em 2006, condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) por não ter investigado a denúncia de Simone André Diniz, empregada doméstica, que foi barrada em emprego por ser negra.
Mas há muitos outros obstáculos para a denúncia da vítima de crime racial. Há casos em que o policial não atende ao chamado e não vai até o local ou, então, quando a vítima vai até o posto policial e é recebida com alguma resistência do policial em registrar o caso. Delton Aparecido Felipe, doutor em educação, professor da Universidade Federal de Maringá (UEM), coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) e membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros/as (ABPN) enfrentou essa dificuldade quando acompanhou um aluno vítima de injúria racial. “Já tive que acompanhar alunos que sofreram casos de racismo gravíssimos, como o caso de um aluno que gravou e, quando fomos denunciar, ele é um jovem negro que, por inúmeras questões que a polícia representa, dificilmente vai à delegacia sozinho e eu, enquanto professor, coordenador do NEAB na época e professor do curso de direito, fui com ele. Chegando lá, a moça não quis registrar porque era só racismo se fosse pego em flagrante. Então, eu disse para ela que ela deveria estudar o caso. A partir do momento que ela descobriu que eu era professor na universidade, que eu fazia parte do conselho racial e que eu disse que ligaria para o promotor que estava na cidade, que ela atendeu o caso.”
Casos como esse mostram a urgência que o Brasil precisa ter em preparar mais as forças policiais para saberem registrar a ocorrência de denúncia de uma vítima que já chega a delegacia fragilizada com a agressão de racismo, tendo mais uma política de acolhimento. Para Delton, o aumento de denúncias de crime de racismo não quer dizer que o número de casos aumentou, mas, sim, que hoje as pessoas estão denunciando mais. “Com o aumento da tecnologia, temos a sensação de que há mais casos de racismo, como a frase de um ator norte-americano no caso do George Floyd, que deu toda aquela movimentação antiracista que ele diz o seguinte: ‘não é que racismo apareceu agora, ele só está sendo filmado”. Além disso, o professor afirma que essa presença maior das discussões sobre o racismo tem feito até mesmo que a branquitude — conceito do autor Lourenço Cardoso — perceba o racismo. “Lembrando que é fundamental as branquitudes perceberem, entenderem e combaterem o racismo, porque há lugares que população negra não está ou fica fragilizado diante de um ato de racismo que é esse outro sujeito que vai conseguir se posicionar nesse momento”, esclareceu o professor. “A branquitude tem lugar de fala no combate ao racismo, sim. Lugar de fala, como foi utilizado por muita gente, não se trata de um ‘cala boca’, e, sim, um lugar social. Ou seja, eu enquanto branco, percebo o racismo assim e entendo que a pessoa negra entenda de outra forma ou que isso gere um sofrimento nela.”
O professor adjunto da faculdade de direito da UFU e também pesquisador associado do NEAB, Humberto Bersani, em conversa com a Conexões também confirma que o sistema de justiça brasileiro não reconhece as práticas de racismo, mas é contraditório por ter uma população carcerária predominantemente negra. “O Estado brasileiro, que deixa de reconhecer o crime de racismo em sua forma mais bruta, é o mesmo Estado que vai promover o encarceramento em massa da população negra”, afirma ele.
Nos últimos anos, houve casos de racismo que levaram à morte da vítima do crime e tiveram grandes repercussões midiáticas a fim de promover a justiça do caso. Exemplos são o assassinato de Marielle Franco, socióloga e vereadora negra, morta com apenas 38 anos em 2018 e que ainda não foi solucionado e de George Floyd, em maio de 2020, nos EUA, assassinado por um policial branco por supostamente usar uma nota falsificada no supermercado. O último resultou na potencialização de um movimento ativista internacional contra a violência às pessoas negras, Black Lives Matter, que já existe há sete anos, mas teve uma repercussão mundial desde o ano passado e vem trazendo conscientização ao mundo todo contra crimes raciais.
No entanto, é inegável que esses são poucos dos muitos casos que acontecem de crimes raciais. “Nos últimos anos a gente teve os acontecimentos, por exemplo como do George Floyd, que chamou bastante a atenção, mas nós temos isso todo dia nas periferias do Brasil. A gente não tem Estado de direito nesses espaços“, esclarece Bersani. Em busca de combater atitudes racistas ainda presentes no Brasil, diversos grupos de estudos discutem assuntos sobre o tema e também buscam a justiça para combater o racismo estrutural presente no país. Alguns exemplos são: o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia (NEAB-UFU), criado em 2006, que atua no sentido de promover ações de ensino, a pesquisa e a extensão na área dos estudos afro-brasileiros e das ações afirmativas em favor das populações afro-descendentes, bem como na área dos estudos da História Africana e Cultura Afro Brasileira; e também a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), uma associação civil, sem fins lucrativos, filantrópica, assistencial, cultural, científica e independente, tendo por finalidade o ensino, pesquisa e extensão acadêmico-científica sobre temas de interesse das populações negras do Brasil. Todas as pessoas podem participar, incluindo pessoas brancas, que de seus lugares de privilégios podem promover ações em busca de justiça por pessoas negras.
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