15 set “Na educação infantil não tem como desvincular escola e família”
A educação é um dos direitos constitucionais garantidos pela lei, fundamentais no desenvolvimento do indivíduo e, consequentemente, do país. Sendo iniciada em sua maioria, na pré escola, onde os alunos têm de dois a seis anos. Segundo a pesquisadora Fernanda Duarte Araújo Silva, Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Infâncias (GEPLI) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia, é na educação infantil que os pequenos desenvolvem seus pensamentos, linguagens e funções psicológicas superiores.
Mas, assim como em outros âmbitos sociais, a educação e o ensino infantil foram muito afetados pela pandemia do novo Coronavírus. O isolamento social causou mudanças significativas que transformaram, a princípio, as salas presenciais em salas virtuais, onde as interações tornaram-se limitadas.
Segundo a pesquisa, Repercussões da Pandemia de COVID-19 no Desenvolvimento Infantil, desenvolvida pelo comitê científico Núcleo Ciência pela Infância, o distanciamento social pode causar algumas dificuldades funcionais e comportamentais nas crianças. O estudo feito em Shaanxim, na China, entrevistou os pais de 320 crianças e adolescentes, que compartilharam as reações de seus filhos. O resultado revelou que 36% dos alunos demonstraram dependência excessiva dos pais, 32% desatenção, 29% preocupações, 21% problemas do sono, 18% falta de apetite, 14% pesadelos e 13% desconforto e agitação.
No Brasil, o estudo desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, também detectou falhas na aprendizagem dos pequenos. Foram ouvidos 2.070 professores e familiares de alunos matriculados em 77 escolas públicas, privadas e conveniadas, de duas cidades — uma do Nordeste e outra do Sudeste. Para 78% dos professores, os alunos estão se desenvolvendo menos do que deveriam. Além disso, o levantamento também revelou que a diferença de aprendizagem dentro de casa chega a 20 pontos percentuais entre famílias ricas e pobres. Atividades essenciais para o desenvolvimento infantil, como pintar, desenhar, recortar papéis e ouvir histórias são mais frequentes em lares de nível socioeconômico mais alto, e mais raras nos grupos mais vulneráveis.
Hoje a Conexões traz uma entrevista sobre o ensino infantil na pandemia, realizada com a especialista, doutora e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Infâncias (GEPLI) da Faced/UFU, Fernanda Duarte.
Conexões: Como podemos avaliar as estratégias adotadas para a educação infantil durante o período de isolamento social causado pela pandemia do novo Coronavírus?
Fernanda Duarte: O que eu pude acompanhar pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguagens e Infâncias (GEPLI), da FACED/UFU, por meio de uma avaliação com os professores da rede particular e da rede municipal, desde o início da pandemia, é que tivemos uma suspensão das aulas e depois uma reorganização do trabalho de cada rede. No município tivemos algumas dificuldades no desenvolvimento das atividades, na construção da proposta pedagógica. Cada rede tentou se organizar. Depois de um tempo a rede municipal soltou algumas orientações curriculares para os professores. A rede particular se organizou com a gestão, orientando os professores. Então, temos duas realidades, uma na educação pública e outra na particular. Podemos avaliar de diversas formas essas estratégias, os professores que já tinham um trabalho consolidado no início de 2020 na área da educação infantil tentaram estabelecer e manter. Fizemos algumas pesquisas e elas mostraram que a preocupação central dos professores da educação pública, desde o início da pandemia, foi manter um vínculo com as crianças, das crianças com a escola e com os profissionais, isso foi muito importante. Depois dessa tentativa de manter os vínculos afetivos, tivemos um trabalho de tentar direcionar ações para as famílias fazerem com as crianças, sempre com orientação, porque a educação infantil tem especificidades, não é a mesma coisa do ensino fundamental. Na educação infantil nós trabalhamos a partir das diretrizes curriculares nacionais, que falam que todas as atividades têm que acontecer por meio das interações e das brincadeiras. Em algumas pesquisas, percebemos que os professores tentavam orientar as famílias para que eles pudessem desenvolver atividades lúdicas, trabalhando as diversas linguagens, a música, a poesia, trabalhando com as artes, de modo geral.
Conexões: É possível destacar os principais equívocos e acertos no que tange às políticas de enfrentamento da pandemia pelas escolas públicas? O que poderia ter sido feito a mais?
FD: Nós realmente sentimos falta de um acompanhamento, um investimento da rede pública, principalmente quando falamos em educação infantil. A rede municipal é a responsável por orientar e investir na educação infantil. O que mais sentimos falta em relação às políticas de enfrentamento da pandemia foi realmente esse subsídio que ainda precisamos. Em relação aos investimentos na educação pública, percebemos que cada escola foi se organizando com as suas dificuldades. Claro que a rede municipal de Uberlândia ofereceu materiais de orientações curriculares, mas em relação às desigualdades sociais que enfrentamos, percebemos que é muito pouco. As famílias precisam ser acompanhadas de perto. As políticas públicas vêm para tentar sanar e amenizar essas desigualdades, mas não notamos isso em relação a um acompanhamento, a um investimento mais de perto, tanto das crianças, mas especialmente das famílias. Quando falamos de educação infantil, não falamos só de crianças. A criança está num contexto familiar e, às vezes, a família precisa de um apoio, de um subsídio até para poder contribuir com a formação das crianças, não tem como desvincular escola e família.
Conexões: Quanto aos recursos públicos destinados à educação, que já vem sendo reduzidos desde a PEC do Teto de Gastos, como essa escassez continuada impactou a educação na quarentena?
FD: Aqui no município de Uberlândia, tivemos o portal Escola em Casa, onde as atividades eram colocadas. Algumas escolas se organizaram para entregar atividades escritas e também a escola na TV aberta. Só que, realmente, sentimos falta de investimento, de pensar os espaços físicos para a retomada, de pensar a formação de professores para essa realidade. Fizemos uma pesquisa e percebemos que os professores estavam cada um buscando a sua formação dentre esse leque de formações que estão sendo oferecidas na internet. Mas, não percebemos uma formação sólida da rede municipal, dos órgãos, no sentido de ajudar os profissionais nesse momento tão difícil e tão atípico. [Faltou] investimento na formação dos professores e também em relação à realidade das famílias frente a tantas desigualdades. Então, se a família não tem um acompanhamento, é muito difícil pensar que ela vai estar contribuindo com a escola para o desenvolvimento integral das crianças.
Conexões: Pedagogicamente, é possível dizer que houve algum avanço com a experiência do ensino remoto?
FD: Não sei se podemos falar de avanços no ensino remoto, principalmente porque estamos falando de crianças pequenas. Podemos falar que os professores têm buscado, infelizmente, de forma individual e não institucional, se apropriar um pouco mais de ferramentas onlines, de algumas possibilidades de trabalho. Mesmo assim, a utilização dessas ferramentas para a educação infantil é algo muito difícil, porque temos que buscar uma formação integral das crianças, nas suas realidades, nas suas potencialidades. Realmente, é algo mais complicado.
Conexões: As escolas públicas de educação infantil estavam/estão preparadas para um retorno seguro às atividades presenciais?
FD:O que eu tenho acompanhado no grupo de estudos, com as professoras e com as realidades que nos deparamos, é que as escolas não estavam preparadas e não estão preparadas. Até porque não houve investimento, poucas escolas tiveram alguma modificação em relação ao espaço físico, em relação ao corpo docente e formação específica. O que muitos estudos científicos vêm mostrando é que, principalmente agora com essa variante, as crianças estão muito expostas, e também os profissionais e as famílias.
Conexões: Qual a importância da escola no processo formativo das crianças e os maiores desafios em relação a falta de convivência no meio escolar?
FD: A educação infantil é um espaço que a criança tem acesso ao desenvolvimento da linguagem oral, musical, artística e ao desenvolvimento do pensamento, da interação, é um espaço de constituição do sujeito. Estudamos muito a partir da teoria da psicologia histórico-cultural que fala que “nos tornamos humanos a partir da relação com o outro”. Olha o quanto a educação infantil é importante, através das trocas, nas interações com os outros colegas, com os profissionais, ela se constitui, se torna humana, se apropria da arte e da filosofia, do conhecimento científico, primordiais para qualquer ser humano. Quando pensamos na criança bebezinha, que nasce, à medida que ela vai se relacionando, a escola tem a função de apresentar esse mundo, esse conhecimento científico, ela vai se apropriando e vai desenvolvendo funções psicológicas superiores. Os desafios no ensino remoto são em como chegar nas crianças, pensando a realidade do nosso país que as famílias não têm subsídios, não têm apoio do governo. Como vamos realizar um trabalho em que precisamos do elo da família, se a família também está desassistida? Faz muita falta o olhar das políticas do Governo para essa realidade das famílias, porque precisamos da família para esse desenvolvimento das crianças.
Conexões: Qual o impacto social da não oferta de creches e escolas para as mulheres/mães/trabalhadoras?
FD: Não se pode ignorar que a educação infantil tem um caráter social, porque as mães trabalhadoras precisam realmente de um apoio para deixar as crianças, para poderem trabalhar. Muitas mães não tiveram a oportunidade de se resguardar, de estar realmente em isolamento social, até pela área em que elas atuam. Só que, mais do que isso, a educação infantil é direito da criança, conquistado na Constituição de 1988. Quando as escolas foram fechadas, no primeiro momento, realmente não tinha outra saída. Mas em relação à falta de investimentos, poderia ter tido outros tipos de ofertas, de reorganização dos espaços, de estar se preparando para esse retorno, então, talvez fosse diferente. Não abrimos as creches e as escolas porque o governo realmente não investiu na educação, mas também não investiu na compra de vacinas. Estamos esse tempo todo nesse abre e fecha, os impactos são grandes para as mães trabalhadoras, mas também para a criança que tem perdido essa oportunidade. Mesmo as que voltam, também voltam sem segurança nenhuma. É um espaço em que as crianças não estão em sua plenitude e os profissionais também não conseguem desenvolver o trabalho que é necessário. As crianças nas escolas hoje não estão tendo o que realmente precisariam para o seu desenvolvimento integral.
Conexões: Na sua opinião, a experiência de fechamento das escolas durante a pandemia alterou a percepção social sobre a educação e seus profissionais? Como?
FD: Com certeza alterou. As famílias compreenderam agora, em vários relatos e artigos científicos, que a escola é um espaço importante de formação das crianças e que o profissional da educação não tem como ser substituído. Pai e mãe não têm a formação, a base, que o profissional ou professor tem. Esse pensamento realmente mudou durante a pandemia, serviu para sinalizar um pouco: olha nós temos a escola, é um espaço educativo importante. É um espaço de formação humana, os profissionais têm formação para trabalhar com as crianças, com as diversas linguagens. Percebemos que essa alteração ocorreu até por conta das crianças em casa, e os pais, além de todos os problemas em relação ao trabalho, também tiveram que enfrentar os desafios em relação à educação. E quem tem crianças na educação infantil a percepção é ainda maior porque são crianças que exigem um olhar atento, uma escuta sensível, precisa estar perto, dialogar. Por mais que tenham algumas atividades remotas, a família precisa estar junta para essa mediação.
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