19 set “Não foram pensadas estratégias nacionais, cada universidade foi se organizando de um jeito diferente”
O ingresso na universidade sempre foi um sonho para a maioria dos brasileiros. E é inegável sua importância. O ensino superior além de ajudar o estudante a desenvolver o conhecimento acadêmico necessário para que possa seguir uma carreira de sucesso, também contribui para o seu desenvolvimento pessoal, por se tratar de um ambiente enriquecedor, com diversas possibilidades de aprendizados extracurriculares e de áreas distintas daquela que o estudante deseja seguir, através de disciplinas optativas, grupos de debate, seminários e workshops oferecidos. Porém, nos últimos dois anos, esse sonho da universidade acabou sendo motivo de frustração para muitos estudantes.
Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, as universidades se viram obrigadas a fechar suas portas e elaborar um novo modelo de ensino que pudesse atender os discentes e docentes de forma a conseguirem prosseguir com seus calendários acadêmicos. Contudo, o modelo de ensino remoto implantado às pressas, os desafios com a tecnologia, a insegurança quanto a qualidade do ensino passado e recebido, o acentuamento da desigualdade social entre os estudantes, além da incerteza quanto ao futuro a ser seguido pelas instituições, prejudicaram tanto alunos quanto professores, o que acabou levando muitos jovens a desistirem de suas matrículas ou abandonarem seus cursos.
Essa desistência pode ser observada através dos números relacionados aos vestibulares em todo o país e até mesmo ao Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). De acordo com a revista Galileu, em 2021, a Fuvest, que dá entrada à Universidade de São Paulo (USP), teve 13,2% de seus 130.678 inscritos ausentes. A Unicamp, registrou 15,5% de abstenções na primeira fase para cursos das áreas de exatas, tecnologia, artes e humanas. Além disso, dos quase 5,9 milhões de inscritos no ENEM em 2020, apenas 2,7 milhões estiveram presentes em um ou nos dois dias da prova, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Quanto à evasão nas universidades, a segunda edição da pesquisafeita pelo Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) e organizações parceiras, publicada em junho de 2021, revela que 49% dos alunos de 18 a 24 anos e 47% daqueles entre 25 e 29 anos já consideraram não retomar seus cursos durante o período de pandemia. Apesar dos graves números, os cortes orçamentários nas áreas da educação, ciência e tecnologia prosseguem, demonstrando um claro descaso por parte do governo.
Para entendermos um pouco mais sobre o cenário atual da educação, com foco no ensino superior durante a pandemia, especialmente sob as perspectivas das políticas públicas, convidamos Aléxia Pádua Franco, historiadora e doutora em educação, atualmente professora da Faculdade de Educação e do Centro de Educação à Distância da Universidade Federal de Uberlândia, para um bate-papo que você pode conferir a seguir.
Conexões: Como podemos avaliar as estratégias adotadas para o ensino superior durante o período de isolamento social causado pela pandemia do novo Coronavírus?
Aléxia Pádua: Foi difícil organizar essas estratégias porque foi inusitado demais. De uma semana para outra, descobrimos que não poderíamos estar mais juntos presencialmente por uma questão de saúde pública, e que precisaríamos pensar outras estratégias para desenvolver os processos de ensino e aprendizagem, além de pesquisa e extensão. E o que aconteceu? O Ministério da Educação não nos deu nenhum indicativo e nenhuma estrutura para que as universidades públicas pudessem ter um norte, por onde caminhar ou o que fazer. Saiu lá uma regulamentação, uma portaria do Conselho Nacional de Educação, mas que dá indicações muito genéricas e muito amplas. Quem estuda políticas públicas avalia que foram orientações muito mais feitas pensando em atender demandas das escolas e universidades privadas. Em relação à educação pública, não foram pensadas estratégias nacionais, cada universidade foi se organizando de um jeito diferente.
Conexões: É possível destacar os principais equívocos e acertos no que tange às políticas de enfrentamento da pandemia pelas escolas públicas? O que poderia ter sido feito a mais?
AP: Em relação a estratégias positivas, vou falar da UFU, como alguém que vivenciou ali de dentro. Eu acho que a UFU acertou no sentido de ter pensado muito antes de começar a fazer qualquer coisa. As aulas foram suspensas em março e só retornamos com as atividades de ensino, em agosto. Passamos, pelo menos, cinco meses nos organizando e vendo como as outras universidades estavam se organizando, observando o que era essa situação tão inusitada e pensando na questão da inclusão digital. Porque se a gente tem uma universidade pública que, no presencial, atende a todos os alunos que se matriculam, então, no ensino remoto também temos que criar uma condição para que todo mundo que tiver condições de participar, participe, e quem não tiver, não seja prejudicado. Fomos criando estratégias que respeitassem o momento de luto cotidiano que estamos vivendo. Se não é da nossa família, é de milhares de pessoas que estão, mas é também o luto de não nos encontrarmos na universidade, de termos tantas políticas públicas se esfacelando. Pensando em estratégias mais operacionais, a gente fez um trabalho intenso de formação de professores e professoras para lidar com essa questão das tecnologias digitais, para dar aulas. A gente do CEAD, junto com a Diretoria de Ensino, foi organizando manuais para auxiliar os professores a entenderem as ferramentas do Moodle, não só em termos tecnológicos, mas pedagógicos. Tivemos que contribuir em toda essa estrutura operacional e pedagógica, conseguimos nos organizar muito rapidamente, para uma coisa que foi muito inusitada. O CEAD também ofereceu um curso aberto onde o aluno entrava e ele mesmo via os passos para aprender a usar o Moodle. Outra coisa que eu acho importantíssima destacar, são as estratégias relacionadas à infraestrutura tecnológica e que é uma questão polêmica na UFU. Uma das nossas estratégias foi não utilizar o google, como a maioria das universidades fizeram. Muitas pessoas reclamaram, mas não ter o utilizado fez com que a gente melhorasse muito nossa estrutura de salas síncronas RNP [Rede Nacional de Pesquisa] e essa é uma alternativa pública. De 20 salas que a gente tinha, hoje temos 100. Foi uma estratégia legal tentar um movimento de privilegiar as plataformas públicas e problematizar o uso das plataformas privadas. Acho que foram importantes estratégias. Em relação a estratégias negativas, não houve um planejamento nacional que possibilitasse uma conversa entre as universidades de todo o Brasil para que a gente fosse construindo estratégias coletivas. Os nossos calendários estão completamente desencontrados. Esse calendário mais unificado facilitaria a mobilidade estudantil de uma universidade para outra, porque mesmo que ela não esteja acontecendo presencialmente, ela é possível online. O que poderia ter sido feito a mais é a questão dos investimentos e infraestrutura tecnológica pública. Existe um fundo chamado FUST [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações], instituído em 2000, para o qual as empresas de telecomunicação são obrigadas a destinar orçamento com o intuito de universalizar os serviços de telecomunicações. Como os nossos serviços de telecomunicação são privados, a Anatel vai controlando esse fundo e utiliza para instalar banda larga nos serviços públicos em cidades que não têm esses recursos, para prover pessoas da classe B a E com serviços de internet gratuito. Menos de 1% desse dinheiro foi utilizado para fazer a inclusão digital, tanto dos alunos da educação básica quanto do ensino superior. E a gente tem que pensar também nos professores. A universidade não me provê nada de internet, um recurso básico. Então uma falha grande foi existir um recurso desse FUST e menos de 1% dele ser utilizado.
Conexões: Quanto aos recursos públicos destinados à educação, que já vem sendo reduzidos desde a PEC do Teto de Gastos, como essa escassez continuada impactou a educação na quarentena?
AP: Além da questão do FUST, outra questão importante de pontuar é que parece que o ensino remoto meio que salvou a universidade de ter que fechar as portas e escamoteou essa escassez de recursos. Muita gente se preocupou do ensino remoto criar justificativas para que a educação à distância fosse substituindo o ensino presencial na universidade pública. Realmente, para fazer com a estrutura frágil que temos hoje, em termos tecnológicos, é muito mais barato. Por exemplo, um professor trabalha com uma turma de 45 alunos [no sistema presencial], um professor na educação a distância pode ter uma turma de mil alunos. Só que essa turma é dividida em muitas turmas de trinta alunos, que são acompanhadas por tutores e o professor acompanha os tutores. São modalidades diferentes, para públicos diferentes e prioridades diferentes.
Conexões: Pedagogicamente, é possível dizer que houve algum avanço com a experiência do ensino remoto?
AP: Acho que a gente ganhou, sim, porque querendo ou não, na marra, a gente teve que estudar um pouco sobre didática, o que é uma didática mediada pela tecnologia. Para além disso, as lives que tem hoje trouxeram um intercâmbio muito legal entre professores, estudantes e pesquisadores do Brasil e do mundo. Era um hábito que a gente não tinha muito e, hoje, nós podemos dialogar, conhecer o trabalho de pesquisa e as experiências didáticas nas mais diversas áreas, de professores de diversas universidades. Também os eventos, que tiveram que ser online, e dobraram o número de participantes, pois muita gente não ia por não ter ajuda financeira para viajar ou porque às vezes não conseguia liberação no trabalho. Com o híbrido, as pessoas podem. Outro exemplo é que meus orientandos estão tendo a possibilidade de fazer disciplinas em outras universidades, porque isso vale para eles cumprirem os créditos, o que no presencial eles não conseguiriam. São ganhos em termos de aumentar as oportunidades informativas e também de metodologia.
Conexões: Diante das polêmicas declarações pelo ministro da Educação sobre a inclusão de pessoas com deficiência, surge a dúvida: qual foi o impacto do isolamento social para estudantes com deficiência?
AP: Realmente aquela fala foi terrível, mas não acontece só com as pessoas com deficiência, porque é um governo elitista e que não está preocupado com direitos humanos para todo mundo. Em relação às universidades, eu não sei se a evasão das pessoas com deficiência foi maior que dos alunos que não possuem deficiência. O que eu digo é que as tecnologias digitais possibilitam muita acessibilidade, inclusive no presencial. Às vezes, para acolher e incluir melhor os alunos com deficiência, temos que utilizar muitas tecnologias digitais.
Conexões: As universidades públicas estavam/estão preparadas para um retorno seguro às atividades presenciais?
AP: Eu vejo um trabalho muito sério do comitê de COVID-19 da Universidade Federal de Uberlândia. Quantas pressões a gente já sofreu do MEC para voltar às aulas presenciais e a UFU bateu o pé falando que não voltaria, porque temos um comitê que faz análises muito sérias das nossas condições de trabalho, nos orientando sobre as possibilidades de voltar ou não. Desde o início o comitê falava que, sem vacina, não tem protocolo. Então, primeiro a vacina, depois pensamos em um retorno com todos os cuidados, porque também só a vacina não resolve.
Conexões: Como evitar evasão e manter a qualidade do ensino, já tão debilitado com os sucessivos cortes de recursos pelo MEC?
AP: Durante esses semestres remotos, tivemos uma boa evasão de alunos, mas não sabemos se eles estão ausentes apenas durante o período remoto e se no presencial eles irão retornar, ou se eles realmente irão desistir do curso. O que se observou é que vários alunos e alunas não puderam continuar porque não tinham os equipamentos necessários para ter uma conexão boa que permitisse participar da aula do início ao fim e baixar os materiais necessários para leitura e estudos. A outra coisa é que muitos tiveram que aumentar a jornada de trabalho para ajudar em questões familiares, e outras porque possuem filhos e não deram conta de continuar com o curso, pelo fato das crianças estarem em casa. Ou seja, são vários os fatores que durante o período remoto aumentaram a evasão no ensino superior. O que é necessário para cuidar dessa evasão e evitá-la é a gente ter muita sensibilidade para observar os alunos que voltaram ou não para o presencial e ter o cuidado no sentido de ir atrás desses alunos, perguntar quais dificuldades eles estão tendo e fazer o que for possível para que eles retornem e concluam o seu ensino superior. A questão vai ser diagnóstico, sensibilidade e mobilização. Os sucessivos cortes realizados pelo MEC também afetam na questão da falta de orçamento para manter a universidade funcionando presencialmente e que prejudica não só o ensino, mas a pesquisa e a extensão.
Conexões: Na sua opinião, a experiência de fechamento das universidades durante a pandemia alterou a percepção social sobre a educação e seus profissionais? Como?
AP: Uma parcela da população acredita que os professores da educação básica e do ensino superior estejam desocupados durante o período de pandemia, como se a gente só fosse voltar a trabalhar quando o ensino presencial voltar. Desconsiderando que, na verdade, a nossa jornada de trabalho aumentou muito, porque tivemos que, além de planejar e ministrar nossas aulas, estudar para fazer com que elas acontecessem e aprender a lidar com o uso pedagógico das tecnologias. Além disso, a noção do tempo de trabalho ficou bem prejudicada, porque como trabalhamos em casa, não temos os horários muito definidos e acabamos tendo demandas de manhã, tarde, noite e madrugada. Às vezes pais e alunos entram em contato em horários que, se fosse no presencial, eles não entrariam. Temos que ficar cuidando para não exceder o tempo de trabalho. Mas, mesmo assim, as pessoas nos perguntam que dia vamos voltar a trabalhar.
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