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Não vai nascer, porque eu não quero e basta eu não querer

O direito reprodutivo é uma questão velha, não só no Brasil como em vários países do globo. | Obra da artista plástica portuguesa, Paula Rego.

Esse texto não é sobre o aborto. Não é sobre as contrações intrauterinas, a febre, o corrimento vaginal, a perda de sangue, a intensa dor de cabeça e o desafio da opção gestacional (ou não) de uma criança. Não visa, nesse momento, trazer à tona os relatos das mais de 50 milhões de mulheres que passam pelo processo abortivo no período de um ano – número registrado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em escala global – ou contar dos sentimentos vivenciados por cada uma nessa experiência que é, ao mesmo tempo, coletiva e individual.

Esse texto é, antes, sobre os direitos reprodutivos das mulheres: um direito humano historicamente construído e, desde os primeiros passos da organização social, passível do intervencionismo estatal. E, se tanto se preza pelo intervencionismo, nada mais justo que tratar e assegurar de políticas públicas a essas mulheres. Ou não é?

O direito reprodutivo é uma questão velha, não só no Brasil como em vários países do globo. O que muda é a força de vontade para tratar de um assunto que, ao longo das décadas, já acumula diversos dados estatísticos e projetos de leis advindos dos mais diferentes partidos. Alguns exemplos simples são o PL 882/2015 e o 3013/2007, vinculados aos nomes de Jean Wyllys (PSOL-RJ), Paulo Rubem Santiago (PDT-PE) e Carmem Zanoto (PPS-SC), que propõem, entre outras questões, a legalização do aborto.

Entretanto, os poucos PLs que visam o avanço dos direitos reprodutivos acumulam-se no Congresso Nacional e, invariavelmente, são anexados – paralisados por sua subordinação a outras iniciativas. E, aqui, estamos também tratando do desenvolvimento da ofensiva antidireitos, fundamentalista e religiosa, da moral conservadora que ganha protagonismo no palco político brasileiro.

A moral religiosa não se limita à restrição da prática abortiva em sua essência. Quando falamos de direitos reprodutivos, também estamos nos referindo à asseguração de métodos anticoncepcionais a todas e todos, à prevenção e tratamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), aos cuidados com as vítimas de violência sexual, ao direito ao pré-natal e ao fim das práticas punitivas ligadas à criminalização do aborto. Estamos, enfim, falando de saúde pública. Para muito além da divisão sexual do trabalho e dos direitos sociais reprimidos durante a Ditadura Militar, era também por isso que as mulheres batiam o pé durante a Segunda Onda Feminista.

Os núcleos de estudo, a reivindicação ao prazer sexual, os direitos à segurança no trabalho e participação política, a resistência ao assédio e o surgimento do assunto em revistas, jornais, programas de televisão e peças de teatro são conquistas, por iniciativa única, dos movimentos de mulheres. Não nos esqueçamos que o fundamentalismo existia desde antes dos anos 70, abominando, por exemplo, o uso de métodos anticoncepcionais pela argumentação naturalista.

Apesar dos avanços de nossas antepassadas, sabemos que não vivemos tempos áureos no que se refere aos direitos sociais. A máxima de 20 anos em 2 lançada pelo presidente Michel Temer (PMDB-SP) é ainda pior que os 50 anos em 5 de Juscelino Kubitschek. Ainda que o nacional-desenvolvimentista JK tenha mantido os olhos convenientemente vedados às grandes reivindicações sociais e continuado o Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ilegalidade, pelo menos almejava a diminuição da desigualdade social pelo desenvolvimento da indústria de base (e, aqui, não estou defendendo o governo JK em nenhuma instância).

Com o governo Temer, vemos reformas de venda de nossa força de trabalho ao grande capital estrangeiro e sequer sombra de preocupação com os direitos das mulheres. Marcela Temer se ocupa com o Criança Feliz, não com o inestimável (e obscuro) número de mulheres mortas anualmente em nosso país por complicações no processo abortivo.

 

Alguns dados

Agora que sabemos o suficiente sobre o processo de criminalização do processo abortivo – e saindo do panorama nacional -, outra informação interessante é que, segundo a OMS, a proibição não diminui o número de abortos nos dados estatísticos do país – pelo contrário: em países onde o aborto é legalizado, as ocorrências diminuem. A diferença também está ligada à geopolítica e à situação socioeconômica de cada país.

De acordo com a OMS, se em 1990 cerca de 39 milhões de casos de abortos eram registrados nos países pobres, hoje eles chegam a 50 milhões. Nos países ricos, eles foram em direção oposta, passando de 12 milhões para 7 milhões. Para a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), as mulheres que abortam têm predominantemente entre 20 e 29 anos, são católicas, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, com renda familiar de até 3 salários mínimos e vivem numa relação estável. A pergunta é: o que o moralismo tem a dizer sobre isso?

Em entrevista à Heinrich Böll Stiftung Brasil (HBS), a integrante do Colegiado do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Guacira de Oliveira, falou sobre a questão moral e política dos direitos reprodutivos refletida na legislação brasileira. “Talvez esse seja o campo do direito mais recente, e por isso sentimos o impacto dessa ofensiva conservadora de uma maneira muito ameaçadora”, defendeu ela.

“Se durante vários anos tivemos na pauta um grande número de projetos de lei para avançar em termos de DSDR que foram colocados em debate e que custaram muito a tramitar, o fato é que antes que conseguíssemos consolidar realmente isso como direito na vida de cada cidadão e cidadã, iniciou-se uma ação contrária, e hoje o que vemos no parlamento brasileiro é um grande número de proposições legislativas que visam criminalizar ainda mais o aborto, colocar a legislação em patamares que nunca existiram nesse país”, completa de Oliveira.

 

A legislação atual

Apesar dos empecilhos, o aborto não é assunto intocável na Constituição. Hoje, a legislação atuante registra que este é um ato de crime contra a vida humana pelo Código Penal, passível de detenção de um a três anos. Não é considerado crime em quatro situações: caso a mulher esteja em situação de risco, caso a gravidez seja resultante de estupro, caso o feto seja anencéfalo ou a mulher faça o aborto em território estrangeiro. Nas três primeiras condições, o governo brasileiro cede aborto legal e gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

As formas mais comuns de realização de aborto clandestino são através da diminuição do autocuidado, de pílulas Mifepristone (também conhecida como RU-486 ou Mifeprex) e Misoprostol (ou Cyprostol) e de chás de canela, carqueja, poejo, tanásia, sene, arruda, buchinha do norte, quina-quina, aroeira, boldo, agoniada, losna e aloe vera. Entretanto, todo aborto clandestino é inseguro e pode resultar na morte da mulher. Podem ocorrer também complicações pós-aborto, sendo necessário cuidados médicos como o exame pélvico, a ultrassonografia pélvica, o exame de sangue, a dilatação e a curetagem. Mas, acima de tudo, o que se discute é sobre o direito da mulher e a sua apropriação do próprio corpo.

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