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Nas prosas das ocupações: relatos reais de moradores de ocupações urbanas em Uberlândia #EspecialOcupações

“Eles falam que vão nos mandar prum albergue, mas… como pode uma criança morar num albergue?”, questiona Gisele. | Fodo: Média Quatro

“Você por aqui de novo, Gisele?”

Imagine a seguinte situação: você é uma mulher, negra, trabalhadora, de baixa renda, esposa, mãe de duas crianças pequenas, grávida de gêmeos. Mora em Uberlândia há mais nove anos. Eis que chega à sua casa uma carta da Polícia Militar, visando dar início às negociações para o cumprimento dos mandados de reintegração de posse do imóvel (e, na prática, da rua) em que você mora. Isso porque você é residente do bairro Taiaman, localizado na zona oeste de Uberlândia e apenas parcialmente regulamentado. Há quase um ano, você vem recebendo intimações e ameaças de despejo, em um processo judicial que te intima a abandonar a sua casa. Nesse processo, não há o mínimo apoio governamental; não se cede um novo espaço, não se recupera o dinheiro perdido.

Essa era a situação de Gisele Guimarães Santos, mãe de Maria, Pedro e João*, há três meses. Hoje ela ainda sente as consequências de uma situação que começou há tanto tempo : as ameaças de despejo, somadas à preocupação e estresse, influenciaram diretamente em sua gravidez, que se tornou de risco. Na hora do nascimento, um dos bebês nasceu morto ; o outro, deficiente. Não é fácil aguentar essa dor. Ainda assim, Gisele é uma mulher de olhos bons, riso fácil, postura empática e decidida diante dos infortúnios da vida. Sentada em seu sofá, papéis judiciais em uma mão e o filho mais novo em outra, conta sua história e a de seu bairro e seus vizinhos, salientando suas condições sem deixar de cuidar do restante do mundo.

Ela é alegre; não se abala; mas entende a injustiça que sofre. Buscando reverter a situação, vai à Câmara com frequência e inclusive já participou do mini-documentário O futuro não é lá, mas é aqui, de produção de Iara Magalhães. Nele, ela ainda grávida, discorria sobre a situação das 24 famílias ameaçadas de despejo no Taiaman e tinha perguntas sinceras: “A lei só serve pra tá no papel? Pra ser cumprida não tem? Só é cumprida pra quem tem dinheiro? Pra quem não tem não adianta?”. E tanta sinceridade surtiu efeito: esse mesmo mini-documentário virou denúncia e quebrou, temporariamente, a liminar que autorizava a reintegração de posse. E houve paz por alguns meses.

Ela conta, sobre esse episódio, que alguns moradores não estavam dispostos a participar do vídeo-denúncia, mas que ela os incentivou. “Coisa que eu não podia passar, eu passei”, diz, “mas uma mãe que tem três filhos pra cuidar precisa correr atrás de um lugar pra morar. Você tem seus problemas, vê que a maior parte das pessoas está sem trabalho e é jogado na rua sem ter algum lugar pra morar. Eles falam que vão nos mandar prum albergue, mas… como pode uma criança morar num albergue?”. São muitas perguntas para poucas respostas.

Como pode? Essa questão vem e volta durante a conversa. Justifica-se a reintegração de posse com questões ambientais, industriais, sociais. Fala-se de preservação – mas então, por que há um lixão do lado? (“preservação do quê?”, pergunta Gisele). Fala-se de lei – mas então, por que tanta preocupação com os bairros pobres e tanto descaso com os bairros ricos? Gisele gesticula, pensa, apreende. “Eu fui até a prefeitura e disse que eles não sabiam como é o desespero de uma mãe que sabe que sua casa vai ser derrubada. E eles falaram: nós sabemos, sim. Não, eles não sabem! Eles não sabem o que se passa dentro do coração de uma mãe”.

E, numa situação dessa, como discordar? Eles sabem o que se passa ali dentro? Gisele é uma mulher forte; não desiste ante às dificuldades. E quase todos os dias, na Câmara – que fica a 15 quilômetros de sua casa, caminho que ela percorre com transporte público – recebe a mesma pergunta intrigada de um dos assessores  assessor do prefeito Odelmo Leão: “você por aqui de novo, Gisele?”. Ela por ali de novo. Até que se resolva a situação, Odelmo. E sem ninguém na rua.

*os nomes reais foram substituídos por nomes fictícios, pretendendo salvaguardar a proteção de menores.

Histórias que se cruzam

Outra história é a de Esmael Ribeiro dos Reis, 54 anos, pedreiro, amasiado e que reside no Assentamento Maná, no Morumbi, há dois anos. Pela primeira vez participando do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ele comprou o direito de construir uma casinha e, agora, mora com a esposa e o enteado. Mas, ainda luta pela sua regularização.

Reis, que já foi casado outra vez, morou em casa própria por 22 anos no Pacaembu. Quando se separou da ex-esposa, com quem teve três filhos, foi morar em um apartamento no Morumbi, onde pagou aluguel por quatro anos. Foi no bairro que conheceu a sua atual mulher. Com dificuldades financeiras e não conseguindo bancar mais o alto custo, tomou a decisão de comprar um pedaço de terra de uma senhora e construir sua casinha no Maná.

Apesar da regularização do Assentamento pela Câmara Municipal há mais de 2 anos. O projeto autorizou a troca do terreno particular, ocupado desde 2013 por áreas do município, até agora pouca coisa foi feita, estando só no papel. Já quase sem esperanças nesta gestão, os moradores ainda aguardam um dia haver a regularização do lugar. O local é precário e os moradores enfrentam dificuldades como a insalubridade da água e a fraca energia elétrica. Quando apresentam problemas de saúde, não conseguem serem atendidos no postinho de saúde por não terem ainda seus endereços fixos, recorrendo ao UAI do Morumbi, conta Reis. Confiando em Deus, “enquanto há vida, há esperança”, os moradores esperam.

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