10 maio “Nós somos corpos políticos”: jornalista e cineasta Raissa Dantas conta sobre projetos, feminismo e democracia
Em meio aos cortes e falta de auxílio que a classe artística vive no Brasil, algumas políticas ainda se mantêm – mesmo que insuficientes. Um exemplo é o PMIC, Programa Municipal de Incentivo à Cultura, que seleciona propostas culturais de pessoas da sociedade civil para receber investimentos e, assim, realizar seus projetos.
Em meio à falta de políticas públicas nos setores sociais e culturais da sociedade, Raissa Dantas, jornalista formada pela Universidade Federal de Uberlândia, resolveu se manifestar por meio da produção do curta “Muitas Mais”. O filme é carregado da expressividade e força de três mulheres na política que lutam para defender pautas culturais, de gênero e de viés social. O enredo narra a trajetória de Dandara Tonantzin, Amanda Gondim e Cláudia Guerra, vereadoras eleitas em 2020, e as suas buscas por representatividade feminina na política municipal.
“Muitas Mais” é parte de um projeto da Produtora Nóis – da qual Raissa faz parte –, o “Dá Pá Virada”, que foca em produções de cunho social e foi contemplado pelo PMIC. Em entrevista para a Conexões, Raissa conta um pouco da sua história e da importância de incentivos à cultura, como o PMIC, para a comunidade:
Como foi a sua trajetória profissional até o audiovisual?
- Eu me formei no curso de jornalismo da UFU, fui da terceira turma, em 2015. Desde 2016, eu trabalho no Sindicato de Técnicos Administrativos em Educação da UFU, onde eu exerço diversos tipos de trabalho como jornalista, em uma gama diversa de questões. E, especificamente falando, a minha aproximação com o audiovisual se deu após a minha formação no curso de Jornalismo. Durante a graduação, a única disciplina que eu cursei que tinha um pouco de relação com isso foi Telejornalismo, uma disciplina em que eu tive muita dificuldade de desenvolver da melhor maneira possível, mas depois que eu formei, eu fui convidada por três amigos, que tinham um projeto de pequena produtora de audiovisual. Fui convidada para fazer parte de um projeto que eles estavam concebendo, fizemos algumas reuniões e, a partir disso, nasceu o “Dá Pá Virada”. O Roberto Camargos – que é meu atual marido, mas, na época, não tínhamos um relacionamento – e o Yuji Kodato – outro amigo – idealizaram este projeto. E a ideia é que o “Dá Pá Virada” fosse um projeto de audiovisual de mídia livre, que tratasse assuntos como democracia, direitos humanos, direito à cidade e outras questões. O projeto foi aprovado em 2016 pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura e, em 2017, nós desenvolvemos a primeira temporada. Eu estava no puerpério, tinha acabado de ter o meu filho, então, acabei não me envolvendo diretamente com a direção, mas fiz a produção executiva. Foi um grande aprendizado, eu nunca tinha feito nada parecido. De lá para cá, aprovamos uma segunda temporada do “Dá pá Virada”, em 2019, – que era para ter sido realizada em 2020, mas, por conta da pandemia, resolvemos dar uma pausa – e retomamos em 2021. E nessa segunda temporada eu fiz a produção de dois episódios: “Muitas mais” e “Um ano depois”, e também estou fazendo a gestão de mídias sociais e a gestão administrativa do projeto.
Como você se sentiu ao dirigir um projeto direcionado à representatividade feminina na política, algo que ainda é muito pouco explorado?
- Durante a graduação, a gente se depara com questões sobre imparcialidade, mas que caem por terra. Nós somos corpos políticos em um mundo carregado de sentidos das nossas histórias, memórias e trajetórias. Então, foi durante esse período que eu passei a me sentir esse ser político, essa mulher com desejos, sonhos e perspectivas de vida, de política e de futuro. Dentro da universidade, fui do movimento estudantil e acabei me filiando ao PSOL, em 2012. Eu entendo que não é possível desatrelar uma coisa da outra, e nem gosto de desatrelar e tentar fazer uma coisa que não me representa na minha totalidade, então me envolvo muito em projetos que acredito, em temas que são muito importantes para mim. Não em uma perspectiva individualista e egoísta, mas que tenham relevância social e potencial transformador, informativo, profundo e transversal. O meu envolvimento com o “Dá Pá Virada” e as temáticas que eu abordo no projeto partem disso: desde o curta que passei para o meu amigo Carlos dirigir na primeira temporada, que é sobre amamentação e que tinha tudo a ver com o que eu estava vivendo naquele momento, e até nessa temporada de agora. E o “Muitas Mais” veio de uma ideia de algo que mexeu muito comigo. Eu conheço a Dandara desde o movimento estudantil, a Amanda eu também conheço desde a minha época de graduação, e tenho muito carinho pelas duas, e a Cláudia Guerra foi uma mulher feminista de referência para mim desde os mais antigos tempos da minha militância, eu acompanhava ela na ONG S.O.S. Mulher. Assim que saiu o resultado das eleições e vi a expressividade de votos que a Dandara teve, e depois tive a alegria de ver que a Amanda e a Cláudia também tinham sido eleitas, aquilo mexeu muito comigo internamente porque eu depositava a minha confiança nessas mulheres e porque acreditava, desde o início, que nós, enquanto sociedade civil, pessoas e indivíduos, deveríamos apoiar, cobrar e acompanhar os mandatos progressistas dessa cidade, representados por essas mulheres. Para mim, foram sentimentos muito intensos de identificação, de reverência, de respeito e de boas expectativas. Sempre que a gente conseguia elaborar um corte do documentário, eu me emocionava. Nos últimos cortes, em que eu consegui fazer a narração e visualizar toda a montagem com base no meu direcionamento, fiquei muito emotiva, em um sentido de olhar e reconhecer a necessidade e a importância de que mulheres ocupem tanto espaços burocráticos – como a cadeira de uma prefeitura –, mas também outras instâncias, na comunicação, por exemplo, que nós façamos direção, captação, produção executiva. A forma como nós olhamos o mundo e narramos nossas experiências é muito única e está carregada dos desejos da sociedade feminista que construímos no nosso cotidiano. Foram sentimentos bem intensos e gratificantes. Foi uma produção que, para mim, nasceu como uma contribuição para que mais mulheres entendam que as engrenagens do patriarcado e da violência política estão funcionando a mil por hora, mas que nós precisamos estar nesses espaços de poder e nos fortalecer enquanto mulheres.
Apesar do projeto ter sido contemplado pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura, ainda falta muito investimento do Governo em projetos culturais no país. Quais as medidas você considera viáveis para melhorar o engajamento da população com a arte e com a cultura?
- Realmente ainda falta muito incentivo e políticas públicas que sejam mais profundas e que sejam melhores, especialmente nos últimos anos, em que temos vivido tentativas de censura, de sucateamento e cortes muito graves em programas de incentivo à cultura. Principalmente após o Golpe de 2016, temos vivenciado diversas questões muito delicadas, então precisamos refletir sobre isso também. Uma coisa que é muito importante é debater os financiamentos, hoje, muitos programas de incentivo à cultura são divididos em duas frentes: fundos de cultura e isenção fiscal. O “Dá Pá Virada” nós sempre enviamos para fundos de cultura, em que o próprio órgão público tem a verba, que passa direto para os proponentes. Só que os projetos que são para incentivo fiscal são aprovados, mas têm que passar por um crivo empresarial para que alguma empresa decida investir no seu projeto, deduzindo os impostos delas. E isso tudo é muito complicado, porque acaba inviabilizando (os projetos) de diversas formas, porque as empresas não veem sentido ou não querem se atrelar aos projetos disponíveis, além de sempre escolherem algumas temáticas em detrimento de outras. Apesar de ser uma questão muito complexa, o financiamento precisa passar por um debate. Se o projeto e as iniciativas foram contemplados, eles precisam acontecer e precisam sair de um fundo, mas também é necessária certa autonomia de quem propõe, para que não haja nenhum tipo de vínculo com as empresas, porque, na minha concepção, essa vinculação do projeto com as empresas pode não gerar nada, mas também pode gerar diversos tipos de desgaste. Além disso, a população e a organização civil, de maneira geral, devem construir os movimentos de cultura, valorizá-los, compor os conselhos de cultura da cidade e dos bairros e, até mesmo, fazer uma auto reflexão e consumir cultura em diversos momentos do dia.
Como você acha que a arte e a cultura contribuem para a formação de senso crítico da população? Quais as consequências da falta de incentivo e investimento nessa área para a sociedade?
- Acho que a arte, a cultura e a comunicação contribuem para formação de senso crítico da população na medida em que tocam as pessoas, seja pelo conteúdo relevante, pelo senso de pertencimento ou pela noção de coletividade. Muitas vezes percebo que vivemos no automático para muitas coisas, daí vem a arte/cultura/comunicação e ressignificam o olhar para determinadas questões que estavam naturalizadas, cristalizadas, apagadas, esquecidas. A crítica social, muitas vezes presente em produções culturais, é muito importante para a construção de compreensão de fatos e contextos sociais. Vejo um potencial enorme nesses campos de expressão e trabalho. As consequências da falta de investimento são muitas: seja pelo agravamento das desigualdades sociais, do desemprego, da miséria, da vulnerabilidade social e, até, a ausência de produções e produtos que poderiam contribuir para a construção da democracia e da pluralidade social. A ausência de financiamento não afeta só a “ponta” da cadeia produtiva, mas toda a sociedade. Primeiramente os artistas, agentes/produtores culturais, dentre outros, que deixam de ter essa fonte de renda para seus trabalhos e que, consequentemente não conseguem ter acesso a bens de consumo, afetando também a economia em outros níveis. Além disso, existem estudos do quanto investimentos em políticas públicas de cultura geram emprego e renda para toda uma cadeia que envolve artistas, setores de logística, alimentação e bebidas, infra estrutura, transportes, turismo. Vira um efeito dominó com consequências que estamos vendo hoje afetar toda a sociedade. Além disso, o investimento em cultura é fundamental para que se desenvolva noções de identidade nacional e local. Investir em cultura é fundamental para a forma como as pessoas se veem e se organizam socialmente. Enquanto país, investir em cultura é fundamental para a maneira como a gente constrói relações diplomáticas, para a forma como outros países enxergam o Brasil. Uma das maneiras pelas quais o país é construído objetiva e subjetivamente é por meio da sua produção cultural. E para que nossa literatura circule fora, para que nossos filmes sejam exibidos fora, para que pessoas conheçam aspectos das nossas produções culturais, é necessário investimento público. As produções culturais, o desenvolvimento cultural, social e intelectual demandam investimento público. Não dá pra esperar que o mercado priorize ou invista nisso. Tomando, por exemplo, a Congada, que é considerada Patrimônio Cultural e Histórico. Essa é uma prática cultural que faz parte da nossa constituição de identidade. Pensar na necessidade de incentivo à cultura não é pensar só no aspecto econômico dela, é pensar na nossa construção social enquanto povo, na importância de entendermos nossa identidade. Lidar com manifestações culturais é imprescindível. Investir nas culturas populares é investir em nós enquanto povo, nação, identidade, país. A parte econômica é importante, mas não podemos perder de vista a dimensão simbólica que é fundamental para nossa constituição enquanto povo.
No final do curta é dito que é uma homenagem a Marielle Franco. Por ser uma homenagem e por ser uma produção de viés político e que critica o atual governo, você chegou a sofrer algum ataque de ódio?
- Não sofri nenhum ataque de ódio em virtude desse episódio. Se houve, não chegou ao meu conhecimento.
Você poderia nos dar uma previsão sobre os próximos curtas e quais as respectivas datas de lançamento?
- O segundo episódio teve sua estréia no dia 26 (de abril), que foi segunda-feira da semana passada, com o tema do um ano de pandemia em Uberlândia pelo olhar de profissionais da saúde. O episódio se chama “Um ano depois”. Ele teve de ser tirado do ar, mas imagino que daqui 10 a 15 dias, ele volte ao ar, com uma reedição. O próximo episódio está programado para o dia 31 de maio e é sobre a vacinação da COVID-19. Depois desse, o quarto episódio será sobre ensino remoto e os outros dois, na sequência, serão sobre refugiados que vivem aqui em Uberlândia e sobre pessoas invisibilizadas socialmente. Como tentamos construir algo factual costurado com algo de maior profundidade, pode haver um outro ajuste caso alguma questão mude, principalmente entre os dois últimos temas, que serão dirigidos pelo Nasser Pena.
Para acompanhar a agenda do “Dá Pá Virada” e assistir aos curtas, acesse o endereço: DaPáVirada Mídia Livre, canal do projeto no Youtube.
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