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Notre-Dame em chamas. E a História junto.

Não há quem não conheça a história de Quasímodo e Esmeralda. Desde 1831, ano de lançamento de O Corcunda de Notre-Dame, os protagonistas desta tragédia romanesca reviram corações e se perpetuam pelas bibliotecas. A obra é considerada um clássico da literatura francesa e, mais ainda, um romance histórico do período medieval. Nela, Victor Hugo ambienta a Paris de 1482, traçando em detalhes a arquitetura da cidade. O autor passeia literariamente pelo Palácio da Justiça, pelo rio Sena e, mais importante, usa a icônica Catedral de Notre-Dame como palco da expressão dramática.

Victor Hugo choraria se acaso vivesse em 2019, e assim choram os seus leitores. Na tarde de segunda-feira (15), milhares de pessoas acompanharam presencial e virtualmente o incêndio que tomou conta da Catedral de Notre-Dame. Nem mesmo a tragédia hugoliana, que condenou Esmeralda à morte, se compara ao desastre que assola neste momento o coração parisiense. Desde o início dessa semana, o mundo viu queimar as muitas lembranças, fictícias ou verazes, que a Catedral carrega em sua imponência.

O coração dói por muitos motivos. O mais importante deles é, talvez, a História do monumento. Sabe-se que a Catedral de Notre-Dame foi construída entre 1163 e 1345, em pleno período feudal da então monárquica França. Dedicado à Maria, mãe de Jesus, o santuário presenciou momentos determinantes para o futuro europeu. Depois de testemunhar o Renascimento, servir como armazém de alimentos durante a Revolução Francesa e quase ser incendiado durante a Comuna de Paris, é triste vê-lo perder, hoje, a espira e a cobertura. O fogo começou justamente na torre do sino, local em que Quasímodo anunciava as manhãs e as noites ao povo parisiense.

Mas nem tudo é tristeza. Enquanto escrevo este texto*, chega a mim a notícia de que, segundo o porta-voz dos bombeiros de Paris, Gabriel Plus, o fogo foi controlado. Por sorte, as torres da região norte e sul foram preservadas, o que impede o risco eminente de queda, mas a estrutura ainda é motivo de preocupação. Pergunto-me se Gabriel Plus sabe que, neste momento, faz História. E não só eles como todos os envolvidos no processo, desde o primeiro a perceber o incêndio até os jornalistas que veiculam as informações em tempo real para diversas partes do mundo. E também eu, que escrevo este artigo, e você, que o lê.

No livro 1808, Laurentino Gomes coloca a seguinte citação de Christopher Lee: “As pessoas fazem a História, mas raramente se dão conta do que estão fazendo”. Desde que a li, aos 13 anos, ando cautelosa das minhas decisões e propondo a todos a mesma presciência. Pelo que me parece, vivemos num período privilegiado da história humana, em que se sabe muito sobre o passado e se tem acesso a diversas ferramentas de registro que podem servir ao futuro. Hoje, mais da metade da população mundial está conectada à internet e, com o tempo, essa população está deixando de ser apenas consumidora da informação para se tornar também produtora. Ou seja: tudo o que está sendo produzido hoje servirá como modelo para as futuras sociedades. Somos eternamente responsáveis por aquilo que acontecer, seja lá o que acontecer!

Victor Hugo, ao escrever O Corcunda de Notre-Dame, fez História na literatura clássica. O próprio Quasímodo, ainda que imaginário, fez História no coração dos leitores, para muito além da Europa. E, hoje, Gabriel Plus e outros personagens deste drama parisiense fazem História: o presidente francês, Emmanuel Macron, que prometeu reformar a Catedral; os bombeiros, que evitaram tragédias muito maiores; o milionário François Pinault, que se comprometeu a doar até R$ 100 milhões de euros para ajudar a “reconstruir” a catedral; e mesmo entidades brasileiras como o presidente Jair Bolsonaro (PSL), que manifestou em seu twitter um “profundo pesar pelo terrível incêndio”.

Para encerrar este artigo de opinião, é importante ressaltar que o Museu Nacional, atingido por um incêndio de grandes proporções no Rio de Janeiro, em setembro de 2018, segue com dificuldades no processo de restauração. Ainda nesta semana (16), o Ministério Público Federal recebeu uma representação sobre o mau estado da biblioteca do Museu. Assim como a História europeia corre riscos no atual momento, a História do Brasil também está fragilizada e deve ser sempre rememorada. A Agência Conexões já publicou uma reportagem sobre a precarização de museus no Brasil, denominado “Os Museus também gritam”.

Cada um escolhe como faz a sua história. Quando se trata da França, Bolsonaro se empedernece com a perda de “um dos maiores símbolos da cultura”; mas, no Brasil, extingue o Ministério da Cultura e despreza a “minoria não-cristã”. E, enquanto isso, o Museu Americano de História Natural de Nova York decide que não sediará o jantar de gala realizado pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, que marcará Bolsonaro como “a pessoa do ano”. Neste momento, todos estão historiando. Veremos o que acontece no futuro.


Beatriz Ortiz
ortizcamargob@gmail.com
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