22 ago O dia que minha avó esqueceu
Clarice Bertoni
Mais de 1 milhão de brasileiros vivem com a Doença de Alzheimer no país, conforme dados da ABRAz (Associação Brasileira de Alzheimer). Entre eles minha avó Mariana Miguel Bertoni, Nena, como gostava de ser chamada, atualmente com 97 anos.
Até os 80 anos Vó Nena era uma senhora gordinha, baixinha, cabelos brancos, bochecha rosada, e muito ativa: administrava a casa, cuidava do marido doente, ajudava na criação dos netos, participava do grupo de mulheres da Igreja, ia às compras, fazia caridade, viajava sozinha, visitava as amigas e organizava eventos beneficentes.
De acordo com o médico e professor de Geriatria, Thiago Monaco, em seu site “envelhecimento saudável”, de 10 a 20 anos antes dos sintomas começarem, a enfermidade já está em ação silenciosa, e não há formas de identificá-la. Nesta fase, ou não há sintomas ou eles são discretos, passando por lapsos normais.
As mudanças no comportamento começaram com pequenos esquecimentos, como o nome de um objeto ou pessoa no meio de uma frase, e o lugar em que guardou algo. Tornou-se repetitiva, perguntava a mesma coisa várias vezes ao dia. Passou a comprar coisas que não precisava e a usar o telefone em excesso. Alguns familiares acreditavam que ela não estava bem, mas o consenso dizia que era normal, “coisas da velhice”.
Bruno Bertoni, neto e familiar cuidador | Créditos: Bruno Leg
O estágio inicial raramente é percebido. O site “alzheimer portugal” faz um alerta acerca da dificuldade de percepção da diferença entre as alterações cognitivas resultantes de um processo natural de envelhecimento, com sintomas patológicos. Conclui que se as mudanças comportamentais interferirem na vida quotidiana da pessoa, é aconselhável procurar um médico.
Um dia minha avó acordou e não reconheceu um de seus três netos. Meu irmão Bruno era um menino magrelo, que na adolescência cresceu rápido, passou a usar cabelos longos e colocou brincos de argola. Para a avó, Bruno se tornou o “Cavalão”, um “moço” que chegou de Guaxupé numa sexta-feira chuvosa e pediu pouso. Ela repetiu a história centenas de vezes; chegava a deixar recados pela casa, para que o Cavalão não deitasse na cama do “Bruninho”. Até que passou a sofrer e chorar de saudades do neto, sair de casa para visitar vizinhos e não conseguir voltar e a guardar o telefone na geladeira.
Rita Bertoni, filha e familiar cuidador | Crédito: Clarice Bertoni
Os sintomas do estágio intermediário são mais fáceis de ser reconhecidos e geralmente alertam os familiares. Segundo a ABRAz, as limitações ficam mais claras e mais graves: a pessoa tem dificuldade com a vida no dia a dia e pode ficar muito desmemoriada. Não gerencia mais viver sozinha, passa a precisar de ajuda para a higiene pessoal e a dificuldade com a fala avança. Apresenta problemas como perder-se e de ordem comportamental, como repetição de perguntas, distúrbios de sono e alucinações.
O diagnóstico não foi um choque porque tínhamos pouco conhecimento sobre a doença na época. Simplesmente deixamos de achar que ela estava ficando “caduca” por causa da idade, e passamos a usar o nome alemão: Alzheimer, soava até chique. A doença progrediu bastante nos meses que seguiram ao diagnóstico; passou a usar fraldas, e a jogá-las pela janela do segundo andar. Tirava as roupas e corria pelada pela casa, brigava e ofendia visitas e funcionários; comia bobagens escondida e na hora das refeições dizia que estava sem apetite. Lia o mesmo caderno do jornal durante todo o dia, escondia dinheiro e acusava outras pessoas de tê-la roubado. Não se reconhecia no espelho, perdeu o verniz social e a dependência de outras pessoas se tornava cada vez maior.
Vídeo: Paulo valentini
Paulo Valentini, cuidador | Crédito: Clarice Bertoni
O estágio avançado torna a pessoa dependente e inativa. Os distúrbios de memória são sérios e os sintomas físicos tornam-se claros. O blog “Alzheimer 360” traz que o enfermo tem dificuldades em praticamente todos os momentos do dia a dia como: não consegue se alimentar sozinho e se comunicar. Mostra dificuldades para reconhecer pessoas, mesmo as mais próximas, e para reconhecer objetos familiares. Apresenta dificuldades de locomoção, e deglutição. Incontinência urinária ou fecal se tornam frequentes. Fica acamado ou precisa de cadeira de rodas para se locomover.
A casa passou por reformas para se adaptar a ela. Uma sala de jogos do primeiro andar transformou-se em seu quarto, porque já não conseguia subir as escadas. O banheiro também foi reformulado, para que uma cuidadora desse o banho duas vezes ao dia. Parou de se alimentar e uma sonda nasoenteral foi a recomendação médica para que não ficasse desnutrida. Andar foi se tornando difícil, passava cada vez mais tempo sentada, posteriormente deitada. Foi emudecendo, algumas vezes xingava, outras elogiava o ator da televisão, mas a cada dia era mais raro ouvir sua voz.
Joelcio Alves, fisioterapeuta | Crédito: Clarice Bertoni
Segundo a ADI (Alzheimer’s Disease International), 35,6 milhões de pessoas vivem com o Alzheimer em todo o mundo, e a estimativa é de que este número praticamente dobre a cada 20 anos, chegando a 65,7 milhões em 2030 e a 115,4 milhões em 2050. No Brasil, o Programa de Assistência aos Portadores da Doença de Alzheimer e o Programa de Medicamentos Excepcionais são ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2002. Neste último, são oferecidos importantes remédios para o tratamento da doença, como rivastigmina, galantamina e donepezil. De acordo com o Ministério da Saúde, 73% das pessoas com mais de 60 anos dependem exclusivamente do SUS.
Não existe cura para a doença de Alzheimer, porém, pelo impacto que ela causa aos pacientes, em suas famílias, em suas comunidades e nos sistemas nacionais de saúde, e a sua representatividade na população que envelhece, constitui uma área de pesquisa incessante.
Após a produção deste perfil, Mariana faleceu.
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