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O limite entre a liberdade de expressão e o respeito social

“A liberdade de expressão é um direito humano fundamental, mas que não pode ser confundido com a ‘liberdade’  para  desrespeitar a dignidade humana”, diz Elisabeth Guimarães| Foto: Flickr

A primeira fase do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) aconteceu  no último domingo (5) e foram abordadas questões de ciências humanas, linguagens e redação. Esta última vem causando polêmica, após a Associação Escola sem Partido mover uma ação que reclamava o direito de expressão dos vestibulandos, uma vez que um dos critérios de correção da prova de redação era o de “elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos”.

Segundo a Associação, o critério é inconstitucional, uma vez que a livre manifestação do pensamento, a liberdade de consciência e de crença e os princípios do pluralismo de ideias, são assegurados na Constituição e os vestibulandos poderiam se ver forçados a expressar ideias que não correspondem ao que pensam, apenas para poder ter uma boa nota no exame.

A Conexões entrevistou a professora Elisabeth da Fonseca Guimarães, que leciona no curso de Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e tem experiência com os temas Direitos Humanos e Ensino Médio para esclarecer alguns tópicos sobre o assunto.

Conexões – A Associação Escola Sem Partido justifica seu posicionamento se apoiando na Constituição, alegando que a liberdade de manifestação de pensamento e opinião são desrespeitadas pela norma que zera a redação do vestibulando. Sobre a justificativa disposta, a senhora concorda?

Elisabeth – É mais uma investida da Associação Escola Sem Partido, em direção aos próprios interesses, buscando resguardar uma série de posicionamentos que em nada contribuem para um ensino democrático e humanizador. Esse tipo de manifestação precisa ser vista por uma outra vertente. Ou pela vertente contrária. Significa dizer que o desrespeito aos direitos humanos, em um texto dissertativo de um concurso público deve ser considerado válido. Com essa defesa, uma série de direitos que já foram conquistados, em relação à humanidade, são desconsiderados. Ao avaliar esse posicionamento pelo seu lado inverso, é possível entender o quanto essa alegação da Associação Escola Sem Partido pode ser prejudicial às conquistas dos Direitos Humanos.

Conexões – A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, afirmou no último sábado que é favorável à alteração das regras. “Não se combate a intolerância social com maior intolerância estatal. Sensibiliza-se para os direitos humanos com maior solidariedade até com os erros pouco humanos, não com mordaça”. Até que ponto a interferência do Estado para benefício Social pode ser considerada legal, ou seja, sem que se faça tolir a liberdade individual?

Elisabeth – A ministra Cármen Lúcia tem sido sempre muito sensata em seus posicionamentos. Ao evocar a sensibilidade aos direitos humanos, mediante a solidariedade e a tolerância, deixa explícito o quanto esses valores são necessários para se elaborar uma escrita que reforce a humanidade aos posicionamentos, independentemente da necessidade de o poder estatal ser requisitado.

Conexões – Que problemas decorrem dessa decisão para os alunos que fizeram a prova neste domingo, uma vez que a regra era vigente desde 2013 e foi alterada um mês antes da aplicação do exame deste ano?

Elisabeth – Na redação, o candidato precisa se colocar diante determinado tema. Precisa problematizar questões sociais, que são de interesse público e que reclamam uma análise coerente da realidade em que vivemos. Imagine um candidato que defende a tortura, a agressão às minorias, a pedofilia, a violência contra as mulheres, o trabalho infantil ou mesmo o abandono dos idosos pela família. Haveria como valorizar esse tipo de posicionamento? Em 2013 ou em 2017, textos que atentem contra a dignidade humana, acredito, são penalizados pelos avaliadores.

Conexões – Que propostas poderiam ser feitas para minimizar o problema levantado, da liberdade de expressão?

Elisabeth – Acho que a sociedade foi pega de surpresa pela Associação Escola Sem Partido que, ao alegar cerceamento da liberdade de expressão, buscou alargar o universo de posicionamentos na escrita da redação, inclusive, preservando interesses que em nada contribuem para garantir a conquista de valores que são defendidos pelos Direitos Humanos. Utilizou de uma tática bastante astuciosa, ao evocar a liberdade de expressão para defender posturas que estão na contramão do que já se conquistou em relação à formação do jovem e da humanização da vida em sociedade. Agora, não se trata de zerar ou não o que está escrito na redação. A questão é muito mais ampla e envolve todo um processo para que os direitos humanos sejam trabalhados na Educação brasileira, de forma acadêmica, criteriosa. O ENEM é um concurso que está continuamente se recriando, inclusive em função do que pensam os próprios candidatos, que podem opinar em relação às mudanças. A liberdade de expressão é um direito humano fundamental, mas que não pode ser confundido com a “liberdade” (entre aspas) para dispor ou desrespeitar a dignidade humana.

Histórico

Originalmente, a Escola sem Partido era um projeto de lei que visava lutar contra a doutrinação ideológica em ambiente escolar e propunha o veto de aulas que contradissessem as crenças dos pais e alunos ou que ensinassem apenas uma visão partidária sobre determinado assunto, mais especificamente nas disciplinas de humanidades.

O Ministério da Educação (MEC) e diversas Secretarias, como as de Diversidade e Alfabetização, alegaram que as medidas apoiadas pelo grupo são inconstitucionais, já que ferem o princípio do pluralismo de ideias e concepção pedagógica, restringindo a diversidade de pensamentos, saberes e práticas ao cercear o exercício do professor.

O embate tomou grandes proporções e ramificações do projeto oficial foram sendo feitas por todo o país. Em Alagoas, em abril do ano passado, o programa Escola Livre foi aprovado e, assim como o Escola sem Partido, visa a neutralidade dos professores em sala de aula, no que diz respeito à questões políticas, religiosas e ideológicas.

Mesmo com o projeto não aprovado, a Associação Escola sem Partido continua agindo em defesa de seus princípios. Foi o que aconteceu no dia 25 de outubro deste ano, em que o grupo moveu uma ação contra o quinto critério avaliativo da prova de redação do ENEM. Este critério dizia que o aluno que ferisse os Direitos Humanos poderia ser penalizado, tendo sua prova zerada.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) decidiu proibir a anulação da redação do vestibulando que fosse na direção contrária aos Direitos Humanos e acrescentou que a punição máxima, para quem o fizesse, seria a perda de 200 pontos, sendo 1.000 pontos o valor máximo do texto dissertativo. A Procuradoria Geral da República (PGR) e a Advocacia Geral da União (AGU) recorreram ao STF para manter o critério avaliativo do exame que já estava em vigor desde 2013. No entanto, no último sábado (4), a presidente e ministra Carmén Lúcia negou o pedido e manteve a decisão do TRF-1.

Às vésperas da prova, o MEC disse que ainda não iria recorrer para dar tranquilidade e segurança jurídica aos candidatos e que aceitaria a decisão do STF para a aplicação da redação deste ano.

ENEM

A alteração de um dos critérios de correção da redação não foi a única mudança feita na edição da prova deste ano. O exame, que era feito anualmente em um único final de semana, desta vez será feito em dois domingos (5 e 12 de novembro).

No primeiro dia de avaliação foram realizadas as provas de ciências humanas, linguagens e a redação. Dos 6,7 milhões de inscritos, apenas 70% compareceram aos locais de prova. No próximo domingo serão realizadas as provas de ciências da natureza e matemática.

 

Vanessa Gianotti
vanessagianotti.jor@gmail.com
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