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O uso indiscriminado de anfetaminas e anorexígenos no Brasil

Clarice Bertoni

Por serem passíveis de autoadministração, os estimulantes do sistema nervoso central (SNC) tornaram-se populares entre estudantes, festeiros, empresários, motoristas e pessoas que precisam perder peso. De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas de 2017, da Organização das Nações Unidas (ONU), 37 milhões de pessoas fazem uso de estimulantes e de medicamentos de prescrição no mundo.

Atualmente, são indicados para o tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), da obesidade e da narcolepsia, um tipo de transtorno do sono, caracterizado por sonolência excessiva. Dados da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE) indicam que o Brasil, recentemente, ocupava o primeiro lugar mundial na venda de anorexígenos, o que exigiu maior rigor na regulamentação do comércio dessas substâncias pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a segunda posição mundial de consumo do Cloridrato de Metilfenidato, usado para tratar TDAH, figurando apenas atrás dos Estados Unidos.

São estudantes que consomem para reduzir o sono e melhorar o desempenho cognitivo; frequentadores de festas no intuito de ganhar energia e se divertir; profissionais na busca de ampliação da produção; motoristas com a finalidade de manter o estado de alerta e vigília; e pessoas obcecadas por sua forma física. Apesar das medidas adotadas pelo Governo para reduzir a comercialização, como a necessidade de receita médica e a informatização do controle destas, as pessoas burlam facilmente a lei. O problema começou com uma grande quantidade de diagnósticos de déficit de atenção entre crianças e adolescentes, com isso as anfetaminas tornaram-se remédios comuns.



Créditos: Clarice Bertoni

Mariana*, 21 anos, e Gustavo*, 20, são alunos do quinto período do Curso de Medicina do Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM) e contam que nunca usaram nenhum tipo de estimulante, mas que têm vários colegas que usam, principalmente em semana de prova. O jovem esclarece que “desde a época do colegial tinha amigos que utilizavam, Ritalina principalmente. Alguns há muito tempo. No cursinho também, vários. E na faculdade muita gente usa, principalmente para fazer provas. Alguns usam de forma controlada, por realmente terem um problema de atenção e serem medicados por especialistas, mas a maioria não precisa e toma de maneira aleatória, num momento ou noutro que sente necessidade de concentração”.

A estudante conta que os próprios alunos que utilizam o remédio com prescrição médica, mesmo não tendo nenhum déficit, mas que começaram a usar para passar no vestibular, acabam dando alguns comprimidos para os outros, que querem tomar para estudar. “Dizem que passam a noite inteira estudando, de forma concentrada, sem sentir fome e cansaço. E que o rendimento melhora muito”. A Ritalina, assim como o Concerta (ambos compostos pelo metilfenidato, um SNC), aumentam a concentração de neurotransmissores associados ao prazer.

São drogas legais usadas ilegalmente. De acordo com a psicóloga e Diretora do Instituto Paulista de Déficit de Atenção (IPDA) Cassilda Amorin, “nas crianças e adultos com TDAH, o anfetamínico tem efeito calmante. O paciente fica tranquilo, presta mais atenção, melhora o foco, fica menos inquieto. Mas em pessoas normais, o efeito pode ser inverso, causando agitação”. Gustavo afirma que “em festas universitárias é comum a utilização de estimulantes. Em todos os cursos. E muitos amigos e conhecidos meus utilizam”. Mariana concorda e acrescenta que “muitos colegas usam, em festas mesmo. Ecstasy, anfetamina, comprimidos. Usam pra ficar doidos nas festas, ficam em outro mundo. Não são a maioria, mas o número é alto”.



Créditos: Clarice Bertoni

Valendo-se da falta de fiscalização, médicos receitam a droga de forma indiscriminada para pacientes não indicados. “Vi um médico do trabalho que fez mais de 9 mil indicações num ano”, afirmou o professor Elisaldo Carlini, integrante da JIFE, em entrevista concedida à Agência Estado. Os jovens executivos descobriram nesses medicamentos um modo de acompanhar o ritmo intenso de trabalho, sem precisarem apelar para drogas ilícitas como a cocaína. Felipe*, 37 anos, é publicitário e faz uso de Stavigile, medicamento indicado no tratamento do sono, em semanas que precisa melhorar a concentração e diminuir o cansaço para cumprir prazos sem abrir mão da qualidade. “Usei Ritalina por muito tempo, mas além de tirar a fome e me deixar com taquicardia, eu me concentrava, mas perdia a  criatividade. O Stavigile me estimula sem comprometer minha memória, atenção e aprendizado”.

É sabido que o comércio ilegal das mesmas continua ocorrendo no Brasil. Felipe explica que “na primeira vez que tomei foi depois de ir a um psiquiatra e me queixar de cansaço e falta de atenção. Então comprei Ritalina com prescrição médica. Mas depois ouvi sobre o Stavigile e quis experimentar. Já comprei com conhecidos, que tinham receita e em sites de venda na internet”. Entre jovens do ensino médio, adultos que estudam para concursos e profissionais com desempenho profissional abaixo do desejado, há uma crença de que remédios como Stavigile, Venvanse, Provigil, Eranz ou Ritalina aumentem a produtividade e a atenção de quem precisa trabalhar ou estudar por horas. Eles atuam no sistema nervoso central acelerando a liberação de hormônios como dopamina, noradrenalina e norepinefrina, que controlam, entre outros fatores, o humor, a ansiedade e o sono.

O efeito não é nenhuma novidade. Anfetaminas são usadas com esse propósito há décadas, mas esses fármacos não são associados diretamente ao “rebite” de alguns anos atrás. Segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), rebites são anfetaminas que atuam no cérebro, estimulando a produção de dopamina para inibir o sono, a fadiga, o apetite e aumentar o tempo de direção. Mas prejudicam os reflexos, afetando diretamente na eficiência da dirigibilidade. Muitos caminhoneiros os consomem, seja para cumprir prazos apertados, dirigir por mais tempo ou executar mais transportes de cargas. José*, 52 anos, é caminhoneiro há mais de 20. Falou que entende os perigos e malefícios do uso das drogas, mas que toma ocasionalmente, quando está atrasado com a entrega e precisa viajar direto por um longo período de tempo. “Uma vez eu tomei para viajar de Brasília a Marabá, no Pará. Era 10 horas da noite quando eu sai, dirigi a noite inteira, o dia inteiro, e só parei de novo às 9 da noite”.

Créditos: Clarice Bertoni

De acordo com dados do Ambulatório de Dependência Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), três em cada 10 caminhoneiros usam regularmente rebites e anfetaminas para circular insones por horas pelas estradas, representando um perigo ao motorista e à sociedade. O número preocupa, pois a combinação de pressa, cansaço e drogas estimulantes são acidentes. A PRF traz que, de cada 100 acidentes em estradas, 37 envolvem carretas. O uso de drogas poderia ser evitado com um planejamento adequado de viagens e trabalhos para manter um equilíbrio saudável entre vida pessoal e profissional.

Os comprimidos de anfetamina também são muito usados por pessoas que fazem regimes de emagrecimento sem o acompanhamento médico. A ingestão da substância é frequente entre quem precisa perder peso, isto porque um dos seus efeitos é a diminuição do apetite, em alguns casos chegando à perda total da vontade de comer. Os remédios anorexígenos, popularmente conhecidos por inibidores do apetite, induzem à anorexia. Pela falta de alimentos, o corpo passa a utilizar as calorias da gordura corporal para alimentar o funcionamento do metabolismo, resultando em quilos a menos na balança. Thais*, 36 anos, é profissional de relações públicas e acredita que seu trabalho acaba exigindo muito de sua imagem. “Eu me cobro muito com relação ao meu peso. Não só eu, acho que é uma imposição social e uma realidade na empresa em que eu trabalho”.

Conta que até a vida adulta não teve problemas em manter o peso, mas que a correria do trabalho, os horários desregrados das refeições e a impossibilidade de fazer exercícios físicos a levaram a procurar uma solução alternativa aos exercícios e aos regimes. “Há uns sete, oito anos, eu comecei a ganhar peso. Eu entendia que era porque estava comendo mal e só ia à academia na primeira segunda-feira do mês. Mas tinha acabado de ser promovida e precisava focar no trabalho. Então procurei uma dermatologista, amiga minha, e pedi uma receita de Síbus”. A profissional afirma que consegue lidar bem com o remédio. Apesar de se sentir agitada e de ter dificuldade para dormir quando ingere, só toma por alguns dias, quando percebe que engordou. “Eu tento controlar a minha alimentação no dia a dia, mas quando vejo que estou engordando eu acabo tomando por alguns dias. Quando paro é um problema, pois sinto muita fome, como se meu corpo quisesse compensar os dias de regime”.

Créditos: Clarice Bertoni

Em entrevista concedida ao dr. Drauzio Varella, o médico psiquiátrico dr. Táki Cordas explica que as anfetaminas “reduzem o apetite durante um período limitado. Por isso, muitas vezes, a pessoa aumenta a dose por conta própria para prolongar o efeito. Embora no início as anfetaminas possam promover perda rápida de peso, a sua suspensão provoca o efeito rebote. O apetite aumenta exageradamente e é comum o indivíduo ganhar mais peso do que tinha antes”. Os estimulantes do sistema nervoso central usados por indivíduos que não se encontram no grupo de pessoas cujo tratamento é indicado, se tornou um problemas de saúde pública crescente. Seu uso abusivo implica na ocorrência de eventos potencialmente perigosos à saúde dos usuários, trazendo não só a dependência física, mas também a psíquica.

Dr. Cordás orienta que “o abuso e a dependência de anfetaminas ainda são pouco estudados no Brasil, mas ninguém mais discute que seu uso contínuo provoca quadros psiquiátricos graves de depressão e irritabilidade que se tornam euforia. Ou seja, a fase maníaca em que a pessoa fica excitada, eufórica, falante, com comportamento inadequado, alterna-se com quadros paranoides caracterizados por extrema desconfiança. É o caminhoneiro que imagina estar sendo perseguido pelos ocupantes do carro que vem atrás ou o funcionário que acha que todos os colegas estão falando mal dele no escritório”. Sintetizadas na década de 1920, como descongestionantes nasais e atualmente recomendada no tratamento de doenças, seu uso está fora de controle. De fácil acesso, é encontrada com traficantes e dividida entre usuários, propiciando um quadro de consumo e comércio desenfreado.

Cassilda Amorin, que é Psicoterapeuta e Coaching Comportamental, aconselha que, antes de pensar em tomar medicação por conta própria, deve-se conversar com alguém que possa de fato orientar, para ajudar a encontrar o que funciona melhor em cada caso. “Se algum conhecido falou sobre estimulantes ou repassou alguns comprimidos, é hora de procurar ajuda. E se você usa medicação comprada pela internet, deve marcar uma consulta o quanto antes”. Só um especialista poderá diagnosticar e indicar um tratamento correto e de maneira segura. Acrescenta que, há “técnicas igualmente eficazes, como os exercícios específicos de ginástica cerebral, que aumentam a capacidade de atenção concentrada, velocidade de raciocínio e memória operacional”. E claro, boa alimentação, exercícios físicos regulares e sono de qualidade. Hábitos essenciais para uma vida produtiva e saudável.

*Os nomes dos entrevistados foram trocados para preservar a identidade.

Agência Conexões
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