
25 maio Os famosos cérebros fujões (e os que ficaram)
O algoritmo do Facebook parece estar de graça comigo nessa última semana. Já são seis, o número de vezes que me indicou alguma reportagem sobre um doutor em alguma coisa trabalhando vendendo doces, desempregado ou em algum subemprego. O tom de surpresa que as chamadas e os comentários adotam é engraçado, mas não é exatamente disso que quero falar agora. Finalmente cedi e cliquei em uma matéria da BBC, muito bem escrita e com dados importantes sobre a subutilização da força de trabalho de pessoas com graduação e pós no Brasil. A matéria vai além da história do doutor que vende doces, e fala de vários setores da sociedade, que foram impactados pela pandemia. Mas, peraí, quer dizer que o doutor qualquer coisa não foi absorvido pelo mercado de trabalho por conta do coronavírus? Não acredito nem um pouco, mesmo com o texto prolixo da BBC. Afinal, a expressão fuga de cérebros não estaria sendo amplamente utilizada nestes tempos se não abarcasse um problema conjuntural e agudo que temos enfrentado enquanto sociedade.
Esses cérebros fujões nada mais são que profissionais altamente qualificados, formados no Brasil, a maioria a partir de investimentos diretos e indiretos dos nossos impostos. São pessoas que se formaram em universidades federais ou estaduais, e/ou tiveram algum financiamento governamental para o desenvolvimento de suas pesquisas, entre estes as famosas e infames bolsas de pós-graduação. Após terminar todos os seus suados, em média, dez anos de estudo (graduação, mestrado e doutorado) tudo o que esse profissional quer, como um bom cidadão, é se inserir no mercado de trabalho e construir sua vida. Mas ele descobre que não existe lugar para isso no país, a não ser que consiga passar em um dos raros concursos públicos para professor universitário. E vamos, combinar, né, nem todo mundo tem aptidão para professor. O que acontece? Recebe uma proposta de trabalho fora do país, afinal ele fez networking durante os longos anos de estudo, e se muda para outro país, levando com ele todo o potencial de desenvolvimento que poderia colocar em ação aqui, sem retornar para a sociedade o investimento público feito na sua formação.
E os que ficaram?
Primeiro, é preciso entender como a pesquisa científica está organizada no Brasil. Aqui esse tipo de trabalho se concentra nas universidades públicas, é importante estressar essa característica: PÚBLICAS. Como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que tem pipocado nas redes sociais por não ter orçamento que a permita funcionar no próximo semestre, juntas as universidades públicas são responsáveis por 95% da produção de conhecimento científico do país, entre outros serviços como hospitais, bibliotecas e museus. Essa concentração da produção científica nas universidades significa efetivamente dizer que a profissão de pesquisador, basicamente, é inexistente. Ela se confunde com a de professor universitário, que pouco tem tempo para isso; com os estudante de pós-graduação, que são, em geral, de programas stricto sensu, ou seja, mestrandos e doutorandos, e somente os bolsistas (mal-pagos) trabalham em dedicação exclusiva para a pesquisa, enquanto o restante está fazendo malabarismo entre trabalho, estudo e vida pessoal; e, por fim, com estudantes de graduação, a famosa iniciação científica, que hoje vale R$400 mensais para a Capes, que cobra a sua alma em demandas.
É impossível focar em somente um tema quando falamos de um quadro geral de desmonte e desvalorização da ciência, que reflete quem somos enquanto sociedade. O problema é tão multifacetado que não importa o quão longo fique esse texto, ainda assim, esquecerei de citar algum tópico. Terminando meu mestrado, todo ele feito com bolsa, tenho algumas impressões sobre os “cérebros que ficam” no país. Há um sentimento comum nas universidades brasileiras de desolação e medo, às vezes agudo e, às vezes, dormente. Após as eleições de 2018, tivemos uma queda drástica no índice de liberdade acadêmica, que passou de 0,929 em 2013, para 0,442 em 2020, segundo o instituto sueco V-Dem. Os números refletem a realidade de pesquisadores acuados, intervenções cada vez maiores do governo na gestão das universidades, medo constante de ter sua pesquisa boicotada e da perseguição em redes sociais por apoiadores do governo.
Mestrandos e doutorandos quando recebem bolsas se comprometem a dedicação exclusiva e a níveis de produção acadêmica altíssimos. Os salários (ops, bolsas… porque quem tem salário é trabalhador e ser bolsista não garante nem esse reconhecimento), não são reajustadas (sequer pela inflação) desde 2011. Ademais, não existe garantia nenhuma de direitos trabalhistas, o que na prática significa: sem férias, nada de 13°, horário de trabalho é uma piada. Ao mesmo tempo, devemos ser gratos, afinal a situação poderia estar muito pior, como o caso dos 2684 projetos que tiveram financiamento negado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no mês passado. Sem falar sobre a questão das pesquisas a respeito da COVID-19. Enquanto outros países do mundo criaram financiamentos específicos para a temática, afinal é atual e urgente, no Brasil, o pesquisador só falta implorar para produzir conhecimento capaz de resolver um problema social. O movimento de retirada de verba da ciência e tecnologia se agrava a cada dia e observamos incrédulos o desmonte, mas sem articulação de resposta, afinal, com um governo negacionista já sabemos que não há diálogo.
Os cérebros que ficam ainda estão inseridos nas universidades, seja na função de professor ou estudante, sem nenhuma saúde mental, com medo do que o futuro lhes reserva. Ou estão subutilizados pelo mercado de trabalho, como o doutor em engenharia espacial, da matéria da BBC, que vende doces para ter uma renda de R$400. É claro que nem todos estão na extrema pobreza, já que assumirão postos de trabalho de secretariado, telemarketing ou montarão seus próprios negócios bem sucedidos, mas que em nada tem haver com seus anos de estudo custeado pelo dinheiro público.
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