
07 nov Paradoxo da tolerância
Por Pedro Prado | Foto por Adriano Vizoni
Criado no ano de 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) surgiu inicialmente como uma ferramenta do Ministério da Educação e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para a avaliação do ensino médio em âmbito nacional. Hoje, além deste resultado, os participantes podem usar a nota obtida na prova para concorrerem a uma vaga em uma instituição de ensino superior.
Instaurada desde 2013, a Cartilha do Participante do Enem, documento que dispõe os critérios para a correção da prova, sempre mostrou pontos fortes e rigorosos no que se diz às normas para a produção da redação do exame. Zerando, por exemplo, a dissertação do participante que produzir um texto com menos de sete linhas, fugir do tema proposto, não obedecer à estrutura dissertativa-argumentativa ou ferir qualquer artigo dos Direitos Humanos.
No final do último mês, dia 26, a Presidente do Supremo Tribunal Federal da 1ª região (STF-1), Cármen Lúcia, suspendeu o item que prevê nota zero para as redações que, em algum trecho, desrespeitarem os Direitos Humanos, para o edital da realização do Enem neste ano. Por se tratar de uma decisão judicial, o Inep nada pôde fazer a tempo sem que prorrogasse a realização das provas, mas em nota a assessoria do Instituto disse que recorrerá a sentença assim que notificada.
Como base na decisão, que foi tomada a pedido da Associação Escola Sem Partido, Cármen Lúcia aponta como justificativa a interferência na liberdade de expressão que essa norma colocava, além de citar dados sobre a anulação de redações por esses casos, que em 2015 foi de 9.942, quando o tema foi “violência contra mulheres”. Contudo, a jurista manteve intacta a quinta competência de correção, que é a apresentação de, no mínimo, duas propostas de intervenção sem interferir nos Direitos Humanos.
Tal discussão em torno do termo ‘liberdade de expressão’ não é nova e possui, inclusive, estudos clássicos, como é o caso do “Paradoxo da tolerância”, desenvolvido pelo filósofo Karl Popper, que consegue explicar um pouco sobre sobre a recente decisão judicial.
Um questionamento é o ponto de início: uma sociedade tolerante deve tolerar a intolerância? Para o Popper, a resposta é não. Ele explica que “a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância”, isso porque, quando a tolerância é estendida para aqueles que não a defendem abertamente, os tolerantes acabam sendo oprimidos e a tolerância junto com eles.
Seus estudos foram aplicados em diversas Constituições, como a da Alemanha, onde é instaurada a proibição incondicional de qualquer ato ou manifestação de cunho nazista, por outro lado, a liberdade de expressão também é protegida no país. A princípio, as duas ideias não podem coexistir, por isso o paradoxo. Qualquer movimento que prega a intolerância, a perseguição deve ser fora da lei. Defender a tolerância exige não tolerar o intolerante.
Popper não foi o único a analisar esse comportamento na sociedade. Na década de 1970, John Rawls, também filósofo, defendeu a “Teoria da Justiça” concluindo que uma sociedade justa deve tolerar o intolerante, do contrário, a sociedade seria, em si própria, intolerante, portanto injusta.Todavia, não foi em todo o seu discurso que ele se contrapôs a Popper, disse ele que, para manter sua auto-preservação, os indivíduos têm o razoável direito de oprimir pensamentos que afetam a sociedade, superando o princípio da justiça plena. “Ao passo que uma seita intolerante não possui pretexto para reclamar de intolerância, sua liberdade deve ser restringida somente quando os tolerantes, sinceramente e com razão, acreditam que sua própria segurança, e daquelas instituições da liberdade, estão em perigo”, disse Rawls.
“Podemos combater a intolerância religiosa acabando com as religiões e implantando uma doutrina única”. “A única maneira de oprimir o intolerante é o obrigando a frequentar a igreja daquele que foi ofendido, para que aprenda a respeitar a crença do outro”. “O governo deveria punir e banir essas outras ‘crenças’, que não sejam referentes a Bíblia”. São essas citações de dissertações em que os participantes receberam nota zero no Enem do último ano, divulgadas pelo Inep em seu banco de dados. Note que algumas delas citam acabar com a intolerância propondo uma intervenção também intolerante.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é, hoje, anexada à Constituição brasileira, fazendo parte dela e devendo ser seguida em qualquer decisão ou ato de contexto político, social, cultural, entre outros. Ferir a liberdade de expressão seja talvez uma variável, que consiste no jogo entre o indivíduo e a sociedade como um todo. Tanto Popper como Rawls colocam que a intolerância não é combatida com intolerância, mas que tratar sobre liberdade é se colocar num pêndulo entre ela e a segurança, uma vez que “podar” uma delas é, talvez, favorecer a outra.
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