31 dez Pesquisas humanas são desafio em tempos de isolamento social
Por Bianca Mara Guedes e Giovanna Abelha
A produção acadêmica brasileira segue firme, mesmo com o isolamento social, ainda que em tempos de desmonte do ensino superior público e em meio a tantas incertezas causadas pela pandemia. A Conexões conversou com três doutorandos do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Uberlândia (PPGEL/UFU), e apresenta algumas das várias pesquisas desenvolvidas durante 2020. Em um balanço do ano, esses pesquisadores nos contam sobre suas dificuldades, surpresas e níveis de trabalho que o ano trouxe.
Anísio Batista Pereira desenvolve sua tese sobre a infância nos poemas de Arnaldo Antunes e Manoel de Barros, pesando especialmente sobre as subjetividades da infância e das crianças como uma classe social que tem as suas especificidades.
Conceição Maria Alves de Araújo Guisardi pesquisa sobre a prática social de ingresso e de permanência no ensino superior por meio das cotas sociais e raciais. Ela analisa como os estudantes cotistas se identificam e se representam, além de como eles são identificados e representados por diferentes atores sociais, tais como professores universitários, a mídia e o governo.
Lucas Araujo Chagas investiga como acontecem os movimentos de internacionalização na UFU, em especial tratando do que há de político-linguístico nesses movimentos, o que há de desdobramentos e contradições que são evidenciados pela linguagem neles.
AGÊNCIA CONEXÕES: Como é fazer pesquisa em tempos de pandemia?
ANÍSIO: A pandemia, querendo ou não, influenciou na minha pesquisa. Bom, o isolamento social nos obriga a permanecer em casa, dificultando o acesso aos materiais físicos, aos livros, à nossa teoria, o nosso referencial teórico, que muitas vezes não encontramos na internet. Assim, a pandemia nos provocou esse impacto, dificultou a pesquisa nesse sentido de ter acesso aos materiais. Minha dificuldade foi o que eu tinha que acessar na UFU, porque não tem como acessar o material nesse período em que a biblioteca não está funcionando. Minha pesquisa é só teórica, mas o acesso ao corpus eu não tive dificuldade, porque eu já havia pedido esses livros antes do início da pandemia.
CONCEIÇÃO: Eu penso que tem dois lados. Primeiro eu acho que é complicado, porque o que eu mais queria durante a minha pesquisa era uma interação presencial. A fim de perceber como os jovens, especialmente os oriundos de escolas públicas de periferia, se sentem ao ingressar no ensino superior por meio de cotas. E, especialmente, quais são os obstáculos que eles precisam enfrentar para que permaneçam na universidade. Por outro lado, temas que interessam à análise de discurso crítica, que é o campo de saber ao qual me filio, têm sido eferverscidos. Ou seja, alguns temas explodiram, nesse contexto pandêmico, proporcionando um engajamento maior de minha parte em tentar produzir o máximo possível [sobre] temas de relevância social, inclusive aqueles relacionados à pandemia, que escancarou a desigualdade social. E, de certa forma, essa desigualdade social possui relação com a minha pesquisa de doutorado: o racismo, os entraves da educação remota, dentre outras questões sociais.
LUCAS: Olha, em primeiro lugar, desesperador, né? Porque para nós, que lidamos diretamente com pesquisa de campo, precisamos estar imersos na sociedade, trabalhar e colher dados. No momento em que é decretado o isolamento social, para um linguista é muito difícil, porque a pesquisa linguística depende da sensibilidade. Então, inicialmente, foi muito difícil, até porque eu estava numa fase de coleta de dados. Entretanto, isso foi facilmente superado de um ponto de vista da pesquisa, embora burocraticamente isso tenha sido talvez um pouco mais difícil. Até porque para que você faça uma entrevista online via Comitê de Ética de Pesquisa é necessário tramitar toda uma outra burocracia e uma outra documentação. Então isso gasta tempo, né? Fazer pesquisa em tempo de pandemia para mim foi muito bom, porque eu precisava de alguns exemplos de diplomacia do conhecimento e pude obter vários deles. Inclusive de universidades que passaram a produzir máscaras, universidades que passaram a produzir álcool [em gel], com o apoio de empresas privadas e também com apoio de verbas governamentais. Então, a epidemia foi uma surpresa boa, porque ela contribuiu muito para os olhares que eu tive ao longo do desenvolvimento da minha pesquisa.
AGÊNCIA CONEXÕES: E como o cenário atual impactou na sua produção científica?
CONCEIÇÃO: Eu penso que foi mais em relação à tese, porque outros temas surgiram e me interessaram muito. Mas em relação à tese, a pandemia chega em um momento em que eu estava indo a campo para a realização das entrevistas. Eu tive que pedir dilação de prazo, pois eu tenho por objetivo realizar um grupo focal com estudantes cotistas. E eu pretendo ir bem além da análise de reportagens que versem sobre o tema da minha tese. Eu quero ter contato com esses alunos cotistas, que serão participantes da pesquisa. Eu quero ouvi-los, quero tentar sentir um pouco de suas angústias. Eu quero contribuir, de alguma forma, para a transformação desse grande erro social que envolve o acesso e a permanência no ensino superior por meio de cotas sociais e raciais.
LUCAS: Olha, o cenário atuou positivamente, porque me trouxe vários exemplos de diplomacia do conhecimento, mas ao mesmo tempo foi muito difícil. Teve uma época, por exemplo, em que eu comecei a acompanhar os tratados diplomáticos entre os municípios, entre as cidades, e, ao mesmo tempo, entre os estados e o próprio Governo Federal para tentar olhar os aspectos diplomáticos inter-relacionais e a interatividade que se tem de um caráter formal na linguagem e como esse caráter formal ele se reveste do político. E o que eu pude perceber é que no nosso Brasil, nós não temos um intra-espaço de relações, muito pelo contrário, nós temos um caos de relações. Então, pra mim o cenário atual impactou diretamente na produção científica, porque eu tive que ter muito controle, sabe? Ter muito filtro com o excesso de informação que muitas vezes não me dizia nada. Ao mesmo tempo, ela me entristeceu enquanto pesquisador, porque eu pude olhar criticamente pro meu país e ver que nós não temos uma linearidade.
AGÊNCIA CONEXÕES: Qual o papel da pesquisa em Linguística no momento em que vivemos?
ANÍSIO: A linguística, em especial a minha linha, que é relacionada a análise do discurso, estuda além da linguagem em si — a materialidade linguística, o sujeito e as subjetividades que estão em jogo. Como que esse sujeito se insere historicamente em um lugar, realiza suas práticas, as relações de saber e as relações de poder. Considero muito interessante pesquisar de que maneira a pandemia impactou esse sujeito, que teve que se isolar e alterou de forma considerável suas relações com outros sujeitos, com saberes. Em especial a educação que teve que aderir ao ensino à distância, alterando as relações humanas. Porque esse vírus alterou muitos modos de vida, os modos de se relacionar, tanto com os outros sujeitos, quanto com a tecnologia que passou então a ser, digamos, uma extensão do sujeito. Porque ele só se comunica com o outro em termos mais amplos pela tecnologia. Como que o sujeito então vai se constituindo nesse período em relação a normalidade da vida?
CONCEIÇÃO: A linguística tem um papel crucial, em qualquer momento da vida. Seria inocência de nossa parte, tentar apartar a linguagem das questões sociais. É por meio da linguagem que representamos o outro. É por meio da linguagem que os poderosos agem com opressão. É por meio da linguagem que podemos questionar, discordar, concordar. E nesse cenário pandêmico, a linguagem assume, eu diria até reassume, seu papel de representar o mundo, as pessoas, de evidenciar crenças, ideologia, valores e de se tornar como um meio de combate a práticas discriminatórias.
LUCAS: É preciso desmistificar a ideia de que quem trabalha com pesquisa linguística lida apenas com o ensino-aprendizagem de línguas ou que lida apenas com espaço escolar. Nós temos pesquisas, por exemplo, voltadas para a parte computacional, que tá aprimorando cada vez mais os softwares, a decodificação e o processamento de linguagem natural, permitindo, por exemplo, que os computadores tenham algum tipo de interação com os humanos e acelerem processos burocráticos. Temos pesquisas voltadas para o próprio design da informação, que tenta melhorar a comunicação entre a população e o Governo, a população e as instituições. Temos pesquisas relacionadas à área da patologia da linguagem, para tentar problematizar questões de linguagem nas práticas médicas. Então, a pesquisa linguística é um campo muito vasto, mas majoritariamente nesse momento ela nos serve para pensar as contradições e, principalmente, tentar resgatar a consciência humana. Como a linguagem marca ações e atitudes políticas, por exemplo, através de simples palavras. Se eu decido chamar uma presidenta de presidenta e não de presidente demarco um posicionamento político. A linguagem, por mais obscura que ela se manteve durante um tempo, ela é política. E não se faz política sem a linguagem. O papel da pesquisa linguística, hoje, é exatamente buscar formas de integrar e reintegrar a sociedade. Quando eu digo que eu não sei língua portuguesa, eu digo que eu não sei a minha história, eu digo que eu não sei a minha cultura, eu digo que eu não sei quem eu sou. Mas ao mesmo tempo, sem me dar conta, digo também que ao não saber quem eu sou, eu posso ser qualquer outra coisa que o outro quer que eu seja.
PUBLICAÇÃO
Mais do que trabalharem em suas teses de doutorado, Conceição, Anísio e Lucas participaram esse ano da publicação de dois livros digitais em parceria com a Editora Syntagma: “Pesquisas efervescentes em linguagem e sociedade” e “Os discursos de um Brasil efervescente em tempos de pandemia”. Além de escreverem alguns capítulos, os três também atuaram como organizadores no processo de elaboração. Eles relatam que no período de submissão, receberam uma quantidade muito além da esperada de textos para comporem a obra e, por isso, acabaram dividindo em dois títulos.
Eles contaram com a intermediação do editor Hertez Wendel de Camargo, professor e pesquisador da UFPR convidado pela Syntagma para acompanhar e orientar a produção das coletâneas. Hertez conta que assim que recebeu a proposta, achou muito interessante, principalmente pela temática instigante. Seu envolvimento no projeto, inicialmente, era mais técnico. Mas ao longo do processo ele diz ter se conectado com as ideias e se envolvido de forma mais pessoal, quase como se também fosse um dos organizadores, sempre apoiando e discutindo junto aos demais. Leia mais sobre isso no link.
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