14 ago Porque um dia alguém fez por mim
Porque um dia alguém fez por mim
Jovem, negro e de periferia. No Brasil, essas três palavras definem a população que mais sofre com a violência gerada pelo sistema vigente. Não por coincidência, elas também definem o despertar da consciência de Flávio Muniz. Teólogo, técnico em enfermagem, administrador de empresas, historiador, graduando em direito e mestrando em história, carrega muitas formações acadêmicas em seu currículo. No entanto, nenhuma dessas nomenclaturas classificam tão bem Flávio como essa: sonhador.
Nascido em Montes Claros, cidade no norte de Minas, durante o período da ditadura militar, Flávio foi criado por sua mãe junto com mais quatro irmãos. “Vó Mara”, como sua mãe era chamada carinhosamente por um grupo de adolescentes que o leitor conhecerá mais a frente, sustentou a casa praticamente sozinha durante a infância de seus filhos, uma vez que não era possível contar com o auxílio de seu esposo. O pai de Flávio tinha complicações com bebidas alcoólicas e costumava passar temporadas longe de casa.
Diante disso, Flávio, por ser o segundo filho mais velho, começou a trabalhar com sete anos de idade para ajudar no sustento da família. Tirou sua primeira carteira de trabalho aos 14 anos, mas só a assinaram quando atingiu a maioridade. Ele trabalhou engraxando sapatos, entregando jornais, vendendo picolés, laranjinhas, foi servente de pedreiro, auxiliar de vidraçaria e inúmeras outras atividades que roubaram sua infância. Sempre trabalhou e estudou e, quanto mais crescia, mas precisava ajudar em casa. Do que recebia, retirava apenas a quantia do “matinê”, as preciosas sessões de cinema pelas quais sempre foi apaixonado. O restante do dinheiro ia todo para a mão da Vó Mara, sua mãe.
Juntamente com as dificuldades sociais geradas pela extrema pobreza em que vivia, Flávio precisou lidar com um forte ultraje que acompanha as pessoas que compartilham realidades semelhantes, o racismo. Em sua infância, motivado pelas inúmeras ofensas e empecilhos que recebia por ser negro, Flávio chegou a se trancar no banheiro e, com muita força, escovava sua pele na tentativa de “clareá-la”. Felizmente, episódios como esses ficaram no passado e, quanto mais o tempo passava, mais ele aprendia a lidar com sua negritude, da qual hoje muito se orgulha.
Aos 16 anos, Flávio deu os primeiros passos rumo à uma vida imbuída de propósitos não convencionais em uma sociedade cada vez mais individualista. Ele se tornou um missionário e aceitou o chamado de pregar o evangelho. E por evangelho, Flávio compreende os ensinamentos de Jesus Cristo ao lutar pelos direitos dos oprimidos, ao defender a verdade, o amor e a compaixão que cada criatura é digna de receber. O evangelho em que crê e propaga não tem nada a ver com o que pregam os principais líderes religiosos do país que usurpam a boa fé de seus adeptos. Flávio acredita que, se aos 16 anos, tivesse sido apresentado à esse dito evangelho, certamente seria ateu. No entanto, ele bebeu de outro poço. Naquela época, os cristãos que lhe estenderam a mão, que o amparou quando mais precisou e que o inspirou a ser alguém melhor, seguiam e viviam, em sua visão, o verdadeiro evangelho. E, por tudo isso, ele é grato.
O tempo passou e aquele garoto cresceu. E, junto com ele, cresceu também a vontade de se doar por inteiro para as causas em que acredita. Em 2007, quando já morava em Uberlândia, seu filho mais velho estava no ensino fundamental e começou a sofrer bullying por alguns de seus colegas de classe. Flávio foi até a escola para entender mais sobre o ocorrido. Chegando lá, ele percebeu que a escola era cheia de problemas e que ele poderia, ou deveria, ajudar e participar mais da comunidade escolar. Por sentir que não somente seu filho, mas os demais alunos também precisavam de um apoio extra, de algo a mais, Flávio começou a desenvolver atividades recreativas e educacionais na garagem de sua casa.
Em 2008, com sua esposa, Áurea Muniz, carinhosamente chamada de “Tia Áurea” pelas mesmas crianças e adolescentes que chamavam sua mãe de Vó Mara, ao constatarem os problemas gerados pela ausência de políticas públicas eficientes do Estado, resolveram dedicar oficialmente suas vidas ao desafiador e recompensador mundo da educação.
Eles alugaram um espaço maior e criaram a Missão Escola da Vida (VEM), uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que atua no bairro grande São Jorge, proporcionando um complemento educacional extracurricular para jovens alunos da periferia. Dentre as atividades ofertadas sob a liderança do casal, está o reforço escolar, o ensino de idiomas, oficinas culturais e esportivas, além de diversas outras atividades que contribuem para a formação acadêmica de cada integrante.
Uma grande apoiadora, e crítica em certos pontos, de todas essas ações era a Vó Mara, por quem os alunos cultivavam um enorme carinho. Constantemente presente, ela sempre tinha um conselho certeiro para dar a cada um. E, ao ver o homem que o filho havia se tornado, Mara não escondia seu orgulho. Infelizmente, quisera Deus que sua passagem pela terra se encerrasse em 2016, após lutar contra um câncer na vesícula. Não foram dias fáceis para Flávio, sua família e demais integrantes da VEM.
Alguns meses se passaram e Flávio, ainda de luto, se viu diante de outro desafio. Esses mesmos jovens e adolescentes que por ele foram ajudados o convocaram para que aceitasse um novo desafio, ser candidato a vereador. Flávio nunca almejou uma cadeira no legislativo local, pois acredita que, enquanto professor, poderia contribuir muito mais na transformação social. Depois de refletir muito, aceitou a proposta e disputou as eleições. Sua campanha foi feita pelos voluntários que acreditam nas causas que ele defende e, por isso, apesar de não ter sido eleito, considera bastante exitosa. Conquistou cada voto de forma consciente e aproveitou a ocasião para espalhar ainda mais que a materialização do sonho de uma sociedade melhor passa, obrigatoriamente, pela educação.
Flávio traz consigo uma máxima que aprendeu com uma de suas referências no meio cristão. Frequentemente, ele diz que “nada muda se nada mudar”. E foi essa inquietação que o fez investir décadas de sua vida na luta diária para mudar a realidade ao seu redor. Ele sabe que a juventude periférica da qual fez parte, carece de oportunidade. São crianças e adolescentes com um enorme potencial que só precisam de alguém que lhes estenda a mão e ensine a caminhar. E, motivado por essa concepção, suas ações trouxeram resultados palpáveis, ações concretas de relevância imensurável. Nos mais de 10 anos de história da Escola da Vida, contribuiu para o ingresso de dezenas de jovens no ensino superior e impulsionou vários outros para projetos nacionais e internacionais.
Como exemplos, é possível citar seu próprio filho, Lucas Kristhen, que ainda no ensino médio, foi selecionado pelo projeto “Caminhos do MERCOSUL”, do Ministério da Educação. Lucas escreveu uma monografia sobre o líder uruguaio José Gervásio Artigas e conquistou a oportunidade de viajar até Montevidéu para conhecer de perto essa história. No momento, é músico e graduando de Geografia da UFU. Outro exemplo é de Jean Sales que aprendeu a superar um baixo desenvolvimento escolar e, hoje, detém uma desenvoltura acima da média. Atualmente, Jean lê cerca de 80 livros anualmente. Além disso, domina a língua inglesa fluentemente. Hoje, cursa Artes Visuais na UFU.
Karen Muniz também é uma referência. Aos 16 anos, foi selecionada para participar do Programa Jovens Embaixadores, da embaixada estadunidense no Brasil. Por isso, passou uma temporada nos Estados Unidos e conheceu mais sobre a cultura local. No momento, cursa os últimos períodos de Jornalismo na UFU. Por fim, mas não tão somente, o exemplo mais recente é o meu, um jovem jornalista que se sente imensamente honrado em ter o Flávio como mestre. Em abril, embarquei para a cidade de Cambridge, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Fui um dos estudantes de jornalismo selecionados para compor o time de documentaristas da Brazil Conference at Harvard and MIT. Além disso, representei Minas no Parlamento Juvenil do MERCOSUL e no Parlamento Jovem Brasileiro.
Com esses e demais integrantes do time, Flávio segue militando pelas causas que a ele são mais quistas, como a educação pública, gratuita e de qualidade em paralelo com a luta contra o racismo. Frequentemente, visita escolas, unidades prisionais e espaços públicos para promover diálogos sobre essas pautas. E, por viver para isso, Flávio é chamado por muitos como “sonhador”, alguém que está distante da realidade. E muito embora esse adjetivo seja utilizado pejorativamente, é assim que ele gosta de ser chamado. Assim como Raul Seixas, ele acredita que um sonho que se sonha só é só um sonho, mas um sonho que se sonha junto se torna realidade. E, para provar essa afirmativa, basta acompanhar os resultados dos anos de trabalhos sociais prestados.
Flávio acredita que existe uma razão maior para que estejamos aqui, que há um propósito em todas as coisas. E, por pensar sobre isso com frequência, se recorda que já esteve à beira da morte várias vezes, mas uma em específico lhe marcou sobremaneira. Em 2001, Flávio teve meningite e, segundo os médicos, tinha poucas chances de sobreviver. Se sobrevivesse, teria sequelas e não voltaria a andar. Guerreiro como é desde sempre, após um período se locomovendo de cadeiras de rodas, não só retomou o movimento das pernas, como segue vivendo livre e sem marcas.
Aliás, algumas marcas ficaram e se fazem bastante presente. Flávio considera que nasceu de novo e, assim sendo, traz consigo aprendizados que somente momentos como aqueles são capazes de ensinar. Imagine se tudo o que você conhece estivesse prestes a acabar e alguém lhe desse uma nova chance para viver, o que você faria? Bem, Flávio não teve dúvidas. Decidiu começar a viver para as coisas que realmente importam, as pessoas – coisas que têm valor e não preço. E, ao contrário do que possa parecer, não é um discurso “espiritualista pobre”, de alguém que prega contra a aquisição de títulos e/ou bens materiais, mas sim de alguém que deseja que as pessoas coloquem o coração onde realmente há valor.
Flávio sabe que sua pregação vai contra ao pensamento predominante em uma sociedade cada vez mais individualista. Mas, mesmo assim, não sente tristeza pelas pessoas não compartilharem dos seus ideais. Se sente o homem mais feliz da terra fazendo o que faz. Gosta de dar aula, gosta de se importar. É uma pessoa que ainda chora ao ouvir a canção “We Are The World”, de Michael Jackson. E, por assim ser, acredita que enquanto for necessário auxiliar as pessoas da comunidade, a Missão Escola da Vida continuará existindo, estendendo o braço a quem precisa e suprindo as lacunas de políticas públicas que deveriam ser de responsabilidade do Estado.
Flávio se orgulha ao olhar pra trás e lembrar dos frutos colhidos, das pedras brutas preciosas que, outrora tenham sido lapidadas e alcançado o brilho próprio, precisam constantemente de serem polidas. Muitas vidas foram influenciadas positivamente por suas ações e, mesmo que momentaneamente possam passar por situações delicadas, compreende que há um propósito em todas as coisas. Seja com os que passaram, seja com os que ainda hão de vir, seja consigo mesmo, sabe que ainda há muito trabalho a ser feito rumo ao sonho de uma sociedade melhor. Age assim pois transborda em si um enorme sentimento de gratidão e sabe o quanto foi essencial o apoio que recebeu de certas pessoas ao longo de sua vida. E, ao ser perguntado do porquê escolheu esse estilo de vida, respondeu simplesmente: porque um dia alguém fez por mim.
No Comments