
22 jul Projetos de extensão que transformam vidas
“Antes de entrar no projeto tinha muita coisa que eu não sabia. Minha visão sobre o mundo ainda era muito limitada. Eu achava que ser negra era só fica de boa no canto e não envolver com bagunça, para não ser acusada. Mas, depois que entrei no projeto, aprendi tanta coisa”, relata Daniele Moreira da Conceição, 16, participante do projeto de extensão, Afrocientistas.
O Afrocientistas é um projeto de Iniciação Científica e extensão que trabalha com a comunidade escolar do Parque São Jorge. Cintia Camargo Vianna, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Poéticas Latinoamerica e Afrodiaspórica (Geplafro), explica que a ação é uma parceria com a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), na qual seis jovens recebem uma bolsa de iniciação científica na Educação Básica, com valor de R$ 230,00 e mais o auxílio transporte. A proposta é que esses jovens sejam introduzidos no universo da investigação e que tenham também uma formação paralela à da escola em educação para as relações étnico-raciais. “Eles pesquisam intelectuais negros contemporâneos nos espaços eletrônicos, nos canais digitais, influencers negras. E têm acesso à educação anti-racista, que é um negócio fantástico também. São jovens de 15 e 16 anos, negros e negras que não tinham ouvido falar das temáticas raciais na escola”, explica Vianna.
A Conexões retoma hoje a série “A UFU no cotidiano de Uberlândia”, na qual temos apresentado projetos e ações da Universidade Federal de Uberlândia que impactam diretamente na vida da população, sobretudo de grupos mais vulneráveis. Como explicamos no editorial que abriu nossa série, extensão é o nome dado a toda ação desenvolvida pelas universidades junto à sociedade, fazendo chegar à população os conhecimentos produzidos no ensino e na pesquisa. O pró-reitor de Extensão da UFU, Hélder Silveira, em entrevista para a Conexões destaca que a extensão é, justamente, a articulação entre a formação que o estudante recebe na universidade em sua relação com a sociedade. Significa “esse estudante se articulando com os diferentes espaços sociais, sejam esses espaços a sociedade de uma forma geral, os grupos vulneráveis, e as diferentes pessoas que vivem dilemas sociais”, sintetiza Silveira.

Daniele Moreira da Conceição, bolsista do projeto Afrocientistas | Foto: Jhyenne Gomes
Daniele, a estudante cujo relato você leu no início desta reportagem, pesquisa sobre a influenciadora digital “Tia Má” com quem se identifica por ela ser “tão porreta e não medir as palavras”. A estudante conta que, quando ficou sabendo do projeto, não conseguia acreditar que era verdade. “Eu sempre quis entrar para a UFU de alguma forma, aí quando eu fiquei sabendo que ia estudar na UFU, fiquei muito feliz”, vibra a menina que, segundo suas palavras, conseguiu entrar “de penetra” porque ainda não concluiu o ensino médio para fazer o vestibular. Daniele sonha em fazer Medicina Veterinária e vê o Afrocientistas como um primeiro passo: “quando eu conversava na sala de aula com a minhas amigas, elas ficavam falando que era muito difícil de entrar e que a maioria das pessoas que entrava era quem tinha um cursinho, que seria muito difícil já que eu nunca tinha feito cursinho. Eu achava que era um pouco distante da minha realidade, sabia que podia entrar, mas que estava muito distante para mim”. Além do aprendizado e de tornar a universidade um sonho mais próximo, o projeto também oferece uma alento financeiro. “A bolsa também ajuda bastante em casa. Como não tem estudo, minha mãe trabalha como gari e aí, para criar nós três, a bolsa já ajuda”, relata Daniele.
O Geplafro foi precursor de alguns projetos de extensão com o enfoque em uma educação antirracista. Além do Afrocientistas, tem o Linguafro, projeto de ensino de idiomas para pretos, pardos e indígenas, para estudantes da UFU que estão em situação de vulnerabilidade e para comunidade externa; e o projeto Negras Memórias, que trabalha com jovens de comunidade tradicionais, as comunidades de terreiro de Uberlândia. O Transnegressão, é um projeto de preparação para a pós-graduação, voltado para estudantes pretos, pardos e indígenas e para a comunidade externa da UFU que também se inclua nesse recorte.
É o caso de Juliana Costa Crispim, 33 anos, graduada em Enfermagem e Especialista em Gestão Pública em Saúde, ambos pela Universidade Federal de Uberlândia. Juliana relembra que em seu período de graduação, realizado no campus Umuarama, se deparou com uma realidade muito elitista: “Fui uma brasileira qualquer escrevendo uma trajetória de exceção, mas hoje vejo como uma estrangeira no próprio País”. A enfermeira explica quando a situação começou a se alterar. “Há uns dois anos tive contato, por conta própria, com textos que demonstraram que nascer negro no Brasil aumentava as chances de adoecimento e morte, e que as explicações estavam mais no campo social que no biológico e questionei o fato de ter descoberto só depois de formada, questionei o fato de a Política de Saúde Integral da População Negra não ter sido citada num curso de saúde nenhuma única vez. Eu só me realizei profissionalmente há pouco mais de um ano, quando entendi meu valor político enquanto enfermeira negra se fazendo presente nesses espaços”.
Esse reconhecimento levou Juliana até o projeto Transnegressão, com o qual ela vê como uma uma possibilidade real de retorno à academia através do mestrado. “Além do suporte técnico, por meio de aulas de português, língua estrangeira, auxilio na construção do projeto de pesquisa, independentemente do resultado do processo seletivo, alguns frutos já foram colhidos. Quatorze anos após meu primeiro contato com a UFU vi, pela primeira vez, uma sala de aula composta majoritariamente por pessoas como eu. Encontrei pares e uma possibilidade real de redesenhar e recolorir a universidade”, relata.
Cintia Vianna explica que os cursos Transnegressão e o Linguafro atendem, em média, 40 pessoas. O Afrocientistas contempla seis jovens bolsista e o Negras Memórias trabalha diretamente com, mais ou menos, 15 mulheres e homens que participam de um grupo de dança, mais um grupo de 10 meninas que são de casas de candomblé diferentes. Com a perspectiva da expansão, caso não seja atingido pelos cortes, o projeto Negras Memórias deve ser levado para duas escolas e um projeto social no segundo semestre de 2019, e as ações devem chegar a ainda mais pessoas. Segundo Vianna, todos esses projetos são feitos por dois bolsistas de extensão, quatro bolsista de Iniciação Científica e seis estudantes voluntários.
A extensão é uma prática obrigatória nos currículos de cursos superiores de instituições públicas, isso porque ela funciona como uma forma do estudante vivenciar o que aprende em sala de aula. Lucas Fabiano Oliveira Costa, 29 anos, é graduando em Letras-Inglês na UFU e atua como professor voluntário no projeto Linguafro. Segundo ele, esse é “um projeto que surge com o objetivo de democratizar o ensino aprendizagem de línguas estrangeiras, de uma perspectiva pós-colonial, e para facilitar o acesso da comunidade preta, parda e indígena da UFU a cursos de língua estrangeira”.

Lucas Fabiano Oliveira Costa, graduando e professor voluntário no projeto Linguafro | Jhyenne Gomes
Costa compartilha um relato que demonstra como os projetos de extensão são benéficos para todos envolvidos. “Costumo dizer que participar do Linguafro como o professor voluntário foi um grande divisor de águas na minha carreira docente. A proposta foi exatamente isso: transformar o ensino aprendizagem de língua estrangeira a partir de um recorte racial. Então, eu fui desafiado. É um desafio porque, enquanto licenciado em Letras, por exemplo, a gente tem pouquíssimo preparo para lidar com as questões raciais na sala de aula de língua estrangeira. Esse foi o grande desafio que me foi oferecido: pensar as funções comunicativas da língua estrangeira e, a partir delas, realizar esse conteúdo”. Sobre os impacto dos projetos de extensão, Costa opina que “o programa tem impacto muito forte na vida deles [alunos]. Para muitos, segue sendo uma oportunidade ímpar de acesso, porque infelizmente, a gente sabe que só a elite brasileira tem acesso a curso de línguas estrangeiras, porque é caro”. Com entusiasmo, o estudante resume: “Eu acho que a gente tá mudando vidas, sim, exatamente por causa dessa dificuldade de acesso”.
A extensão é, portanto, um dos modos da universidade devolver para a sociedade um pouco do investimento que é feito na formação desses futuros profissionais. Bruno de Oliveira dos Santos Goes, 19, artista e estudante de Teatro na UFU é um dos bolsistas dos projetos coordenados pela professora Cintia Vianna. Para ele, participar do projeto “fez me entender intelectualmente como um homem negro e descobrir meu caminho de pesquisa na academia”. Santos lamenta as dificuldades com perspectivas de cortes na educação: “É muito difícil saber que tudo está tão instável, de não ter certeza da minha permanência na Universidade, por conta dos cortes das bolsas”.
O bloqueio de 30% sobre as despesas discricionárias, anunciado pelo Ministério da Educação no último dia 30 de abril, pode afetar diretamente os projetos de extensão da UFU. “A extensão, nesta e em todas as universidades brasileiras, tem funcionado fortemente com os recursos discricionários”, explica o Pró-reitor, Helder Silveira.
Vianna diz que bolsistas envolvidas nos projetos não têm muita expectativas de renovação das bolsas. “No começo do ano já foi difícil renovar, porque houve um corte de, mais ou menos, 100 bolsas, de um contingente de quase 300 bolsas. Os meus estudantes escaparam nesse primeiro corte”, explica a coordenadora. Porém, explica o temor de que com a redução de verbas os projetos não consigam prosseguir: “se não tivesse monitores para atender os meninos, a associação que financia a escola que é parceira, o bolsista que ajuda a estabelecer esse vínculo, não é possível. O docente sozinho não não faz um negócio desse, não”.
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