18 mar Quando a Polícia abusa
Os estilhaços das bombas cortaram a pele dos estudantes. O estudante Myke N., que foi ferido, tentou por três vezes fazer exame de corpo delito, mas nos três dias marcados o profissional não esteve presente na Delegacia da Polícia Civil. | Foto: Correio do Estado
Os astros já sabem, a História também. Os velhos, nem se fala. Eles estavam aqui; eles podem nos contar: aconteceu o mesmo na Guatemala, Paraguai, Argentina, Peru, Uruguai, Chile e inclusive aqui mesmo, no Brasil. Em um dia governa um presidente eleito democraticamente; no outro, os militares dão um golpe e assumem o poder. Instauram-se as ditaduras. Se faz tempo? Algumas não têm nem meio século desde que terminaram. Nossa memória é curta. Não lembramos os nomes dos tiranos, quanto menos dos depostos, perseguidos e assassinados. Não lemos os astros, não interpretamos a História e não ouvimos os velhos. Conhecemos pouco do mundo e, ao nos colocarmos nessa posição, permitimos que os padrões se repitam. E eis que tudo acontece de novo, e de novo, e de novo.
No final de fevereiro, escrevi uma matéria sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro e suas problemáticas. Já desde aquele momento nossos olhos estavam atentos. Entretanto, percebo hoje que a vida me concedeu mais uma de suas ironias: exatamente um mês depois desse decreto, estou sentada no mesmo lugar, exercendo a mesma profissão, mas em meu peito uma vida a menos e uma revolta a mais: Marielle Franco, assassinada provavelmente pelos mesmos militares que juraram comportar-se democraticamente. E pelos mesmos que apostaram suas fichas na fala de Braga Netto em fevereiro: “o Rio é um laboratório para o Brasil”!
Laboratório! Que mulheres negras são assassinadas todos os dias nós já sabemos, acontece tanto que os jornais já desistiram há muito de abordar todos os dias a mesma pauta. Porém, é a primeira vez que nos defrontamos, em 2018, com essa situação: uma vereadora, socióloga, defensora dos que morrem cotidianamente, relatora da comissão fiscalizadora da intervenção no Rio (!), executada. Qual é o recado? Relatores não têm espaço. Jornalistas não têm espaço. Minorias não têm espaço. Todos aqueles que sabem mais do que deveriam saber vão desaparecer, serão torturados, serão baleados ao voltar pra casa. As opções são muitas, mas nenhuma acaba bem. E os velhos já dizem: é assim que começa.
Mas esse tal laboratório do qual fala Braga Netto parece não ser tão utópico quanto imaginávamos de início. Se a Polícia Militar no Brasil sempre adotou um porte mais autoritário do que em outros países – isso temos atestado; são tantos casos que transformariam essa matéria num livro… Preciso falar do Carandiru? –, agora ela recebe um novo aval e, logo, uma nova lógica: se temos o poder no Rio, temos mais poder que antes. Se temos mais poder que antes, podemos. E é nesse ponto que entram (ainda mais) os abusos, as corrupções, os autoritarismos, as agressões, as violências. Tudo no plural.
Em momentos como esse, eu gostaria de não ter motivos para me referir à minha cidade Uberlândia, mas tenho. Aconteceu no bar da Tonha e se estendeu até uma distribuidora de bebidas (Disk Depósito), no domingo, 11 de março, por volta das 23 horas. O bar é conhecido entre os estudantes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e sempre foi ponto de encontro ao final da tarde e início da noite; isso desde que ele existe, há 20 anos. Assim, não era surpresa que se agrupassem ali novos e velhos alunos, reunidos em comemorações um dia antes do início das aulas da graduação. A surpresa foi a súbita aparição da Polícia. E quando digo súbita, quero dizer exatamente isso: cerca de oito viaturas com giroflexs desligados, as saídas fechadas, nenhuma ordem de dispersão, e de repente bombas de estilhaços, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, fechamento dos bares e muitos estudantes feridos [vide fotos].
Alguns desses estudantes foram Nayara F., Camilla F., Bruno S., Pedro I. e Myke N., que preferiram ocultar seus sobrenomes por questão de segurança. “Foi assustador. Eu estava conhecendo a cidade e foi assim que fui recebida”, inteirourelatou Nayara, que veio de São José do Rio Preto e começou recentemente o curso na UFU. “Além da agressão à integridade física, tem também os danos psicológicos que esse episódio me causou”, concluiu ela. De acordo com os relatos dos estudantes, as justificativas dadas pela Polícia no momento foram a de corrupção de menores, tráfico de drogas e resistência dos estudantes. Ironicamente, nenhum menor e/ou traficante foi apreendido naquela noite, e a maior resistência apresentada foi a dispersão de todos os presentes.
Mas não são recentes as intervenções policiais na UFU. Sobre isso já se tem escrito e falado desde muito tempo, apenas se renova a preocupação a cada ataque sofrido. No próprio bar da Tonha já havia tido intervenção militar durante o carnaval, no evento conhecido como CarnaTonha, em que os policiais apareceram com armas e equipamento de choque. Dentro dos muros da universidade, festas são proibidas há anos, e as que acontecem em repúblicas têm data e hora certa pra acabar. O Jambolão morreu; só pisar ali já é visto como atitude suspeita. E, como adicional nesse festival de violência, já tem policial militar ameaçando estudante pelo Facebook [vide fotos]. Parece que o direito à cidade, aos jovens universitários, é restrito.
Na UFU, a situação permanece em transição. Já no dia seguinte ao episódio, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) divulgou uma nota de repúdio e orientações jurídicas quanto à ação da PM. O professor Edilson Graciolli, diretor do Instituto de Ciências Sociais (INCIS), entrou em contato informal com o reitor Valder Steffen Júnior por meio de um memorando interno para cobrar um posicionamento da UFU, recebendo a resposta de que não haveria pronunciamento da reitoria sobre o caso, pois este não aconteceu dentro das imediações da universidade [vide memorando]. O assunto será discutido no próximo Conselho Universitário (CONSUN).
Fora dos muros da universidade, a Agência Conexões não obteve resposta da Polícia Militar. Os estilhaços das bombas cortaram a pele dos estudantes. O estudante Myke N., que foi ferido, tentou por três vezes fazer exame de corpo delito, mas nos três dias marcados o profissional não esteve presente na Delegacia da Polícia Civil. “Todas as vítimas de violência de Uberlândia estão dependendo desse profissional, que não está na delegacia”, diz N. “Fora isso, eu acredito que uma universidade tem total responsabilidade sobre seus alunos, o que não está acontecendo agora”, conclui.
Ontem, durante o período da noite, a Polícia Militar se manteve próxima ao Bar Verde e Bar da Tonha, rondando com viaturas e giroflexs acionados. São casos que não acabam mais e, ao fim de tudo, ainda falta um pronunciamento da Polícia Militar. Os ânimos efervescem no Brasil e me pergunto: da próxima vez que me sentar pra escrever, o que terá acontecido? Sempre nos sobra a velha esperança de que a situação melhorará, mas os velhos já dizem: é só o começo. Que possamos resistir. Está na hora de mudar o rumo dessa história. Marielle Franco, presente. Ustra, nunca mais. Que o Brasil se liberte das amarras das ditaduras.
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