23 abr Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?
Abro esse texto com uma pergunta proferida pela vereadora Marielle Franco (PSOL), dias antes de sua morte. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe? Passado pouco mais de um ano desde a execução de Marielle, a frase da militante ainda ecoa nas ruas, nas vielas e nas periferias. A dúvida que tira nosso sono, que fecha a nossa garganta e que nos paralisa. Quantos mais?
7 de abril de 2019, provavelmente mais um domingo de descanso e tranquilidade para a família Santos. Imagino o almoço em família, regado a risadas e vozes que tentam sobrepor o som do pagodinho que embala mais uma família preta nesse Brasil. Após o almoço, a família se arruma, se perfuma e cinco pessoas – Evaldo, seu filho de 7 anos, a esposa, o sogro e uma amiga – entram no carro branco para ir a um chá de bebê. Mal sabiam eles que a combinação de uma família preta dentro de um carro bom e novo seria o resultado de uma sentença proferida pelo Estado, que devia protegê-los.
Naquele domingo tranquilo, Evaldo Rosa dos Santos, músico, marido, pai, filho, foi executado com mais de 80 tiros pelo Exército brasileiro em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro. O carro da família foi atingido por mais de 80 tiros de fuzil, proferidos por militares mesmo após alguns ocupantes do carro conseguirem fugir e pedirem para parar. Naquele dia, a humanidade de Evaldo, homem negro, foi retirada para substituírem por um número. Evaldo deixou de ser tudo que sempre foi, uma pessoa completa, com sonhos, com ações, para integrar os números sobre assassinatos com arma de fogo no Brasil.
Segundo o Mapa da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil. A juventude negra tem vivido uma política de extermínio, com autorização do Estado. Pois, assim como dizem que a bala perdida sempre tem um destino, as execuções realizadas pelas polícias e, nesse caso, pelo Exército, tem uma cor e ela é preta.
Naquele domingo, duas famílias foram destruídas e separadas por 80 tiros de fuzil, proferidos por mais de dez militares. Luciana dos Santos Nogueira perdeu seu companheiro, que a acompanhou por quase 30 anos de vida, para a política de extermínio do Estado; e quase perdeu seu padrasto Sérgio, também baleado. Também vítima do estado, Luciano Macedo, catador de recicláveis, tentou ajudar o músico e foi baleado três vezes. A sua companheira Daiane, mulher preta, grávida de 5 meses, implorou pela vida de seu marido, que ficou onze dias internado em estado grave e veio a óbito no último dia 18. Executado pelo Exército, Luciano Macedo foi enterrado em cova rasa. Daiane ainda não foi contactada por representantes do governo e conta com a ajuda da ONG Rio de Paz, que promove um financiamento coletivo para conseguir comprar um enxoval e alugar uma casa para ela.
Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro (PSL), mostrando total falta de respeito e governabilidade, diz que “O Exército não matou ninguém, não. O Exército é do povo e não pode acusar o povo de ser assassino, não. Houve um incidente, uma morte”. Essa fala nos leva a questionar o entendimento do presidente sobre casos como esse, já que a execução do músico não é um caso isolado.
Em 2015, cinco jovens negros, Roberto de Souza, 16 anos; Carlos Eduardo da Silva Souza, 16; Cleiton Corrêa de Souza, 18; Wesley Castro, 20; e Wilton Esteves Domingos Junior, 20; foram assassinados com 111 tiros pela polícia no subúrbio do Rio de Janeiro. Cento e onze tiros contra cinco jovens que iam comer um lanche para comemorar o novo emprego de um deles. Há também Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, 26, morto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, que “confundiu” o guarda-chuva de Rodrigo com um fuzil.
Seis anos depois, ainda nos perguntamos: Onde está Amarildo? Amarildo, que, após sair para comprar comida, nunca voltou para casa. Ele foi levado para a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. E tem o menino Marcos Vinicius, de apenas 14 anos, que após ser baleado em uma operação no Complexo da Maré perguntou: “Mãe, eles não viram que eu estava com roupa de escola?”.
As balas tem um destino, e o destino são os corpos negros. Nossa juventude e mulheres e homens pretos são assassinados diariamente por aqueles que deviam nos proteger. Segundo dados do Mapa da Violência, de 2016, em 10 anos o número de pessoas negras vítimas de Homicídio por Arma de Fogo (HAF) teve um aumento de 46,9%, enquanto o número de mortes de pessoas brancas vítimas de Homicídio por Arma de Fogo (HAF) teve uma queda de 26,1%. Números assustadores, mesmo com a implementação do Estatuto do Desarmamento, que é atacada diariamente por um governo que se elegeu com a promessa de liberar o porte de arma.
A morte de Evaldo e de tantos homens negros não foram acidentes ou incidentes, como proferido pelo Presidente Jair Bolsonaro, pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro e pelo Ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva. Evaldo foi atingido por três tiros nas costas.No dia anterior, Christian Felipe Santana de Almeida Alves, um jovem negro de 19 anos, foi morto com um tiro de fuzil nas costas ao furar uma Blitz do Exército, na mesma região. Mais uma prova da covardia que acomete o Estado brasileiro.
Em 2019 ainda é preciso afirmar que vidas negras importam. Até quando a cor da pele será associada à marginalidade e a criminalidade? Até quando usarão a política de balear primeiro e perguntar depois? Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?
O rapper Djonga manda a letra: “Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho. Que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho”.
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