
16 ago Resistência na Agroecologia
Mãe, esposa, doméstica, cozinheira e agricultora: Ilda Maria caminha rumo à sua 52ª primavera. Já passou por tantas luas nessa vida que nem se lembra mais. De mão calejada e pano na cabeça, todo dia dorme e acorda cedo: a rotina não é fácil para quem vive na roça. A filha, de 13 anos, sai de casa todo dia às 5h40 para chegar à escola. Dona Ilda mal a vê partir, mas, de vez em quando, prepara para ela um chá de ervacidreira, observando com orgulho o corpo jovem de sua menina. O marido, sempre revigorado, passa o dia cuidando da plantação, coisa que ela também gostaria de fazer. A aposentadoria, no entanto, ainda está longe de chegar. Enquanto isso, o jeito é trabalhar como doméstica na cidade.
Faz oito anos que mora ali, no assentamento Carinhosa, a cerca de 60 quilômetros da cidade de Uberlândia. Os anos passam e o documento oficializando a posse de sua terra não chega. Nesse meio tempo, entretanto, plantação veio e plantação foi: a vida independe da burocracia. Todos os dias, Ilda e sua família cuidam dos tomates, abóboras, alfaces e maracujás da horta, esperando pelo pedaço de papel que os legitimará – como se já não fosse legítima toda ação que fazem.
A mulher ainda lembra com exatidão do dia em que Cristiane, Zé e todos aqueles desconhecidos vieram pela primeira vez ao assentamento, colocando os pés na terra e falando num curso sobre agroecologia, resistência, saúde, comunidade, economia solidária.
Era um termo abstrato em cima do outro, mas a simpatia era tanta – e tão humana! – que Ilda ficou. E escutou. Foi com eles que se desenvolveu ainda mais enquanto agricultora, aprendendo, refletindo, reinventando, aplicando, agindo. E, de repente, o termo agroecologia já não parecia coisa de outro mundo, já não parecia abstrato. Pelo contrário, se fazia concreto a cada novo ensinamento. Agroecologia: “auto-sustentável socialmente, viável economicamente e correta ecologicamente”. Não usar produto químico nas plantas, deixá-las serem. E ela, Ilda, interagindo com seu campo sem agredi-lo – como suas plantas, simplesmente sendo.
Foi também durante o curso que conheceu Zenaide, Duda, Fátima, Joana e outros moradores do assentamento. Alguns ela já conhecia, mas foi tanta gente nova que logo começaram os convites para festas de São João, reuniões para a situação da terra, grupos de estudo dos católicos, evangélicos e espíritas, as caronas… Para reunir, é só soltar um foguete que todo mundo já sabe. E foram bons e fortes os laços que se estabeleceram: Ilda respeita aquelas pessoas e confia nelas, como sabe que elas também a respeitam e confiam nela. E assim a vida caminha.
Apesar de o curso ter durado apenas alguns dias, foram necessários 365 apenas para neutralizar a terra de Ilda, já fraca por conta dos agrotóxicos anteriores. A saúde da terra veio junto com a saúde da mulher: juntas, as duas se fortaleceram e se livraram de tudo que as faziam sofrer: falta de confiança, incerteza, insegurança, dúvida, rancor, desconhecimento. Cristiane, Isabella, Felipe, Zé: todos eles continuaram visitando-a de tempos em tempos, acompanhando o seu desabrochar. E, enfim, quando perguntaram a todos os envolvidos quem gostaria de trabalhar com agroecologia, Ilda não hesitou: levantando a mão, seu “sim” foi decisivo. Potente.
E, desde então, a vida segue. Mas segue em outro ritmo, outro tempo, outro ambiente. O jeito de plantar de dona Ilda e sua família não é o mesmo de antes e, às vezes, exige inclusive mais trabalho. Mas eles sabem que o esforço vale a saúde e a qualidade.
Hoje, Ilda trabalha como vendedora dos próprios produtos, na Feirinha Orgânica concebida pelo Centro de Incubação de Empreendedorismos Populares e Solidários (Cieps), o mesmo grupo que a auxiliou naquela época do curso. A feirinha acontece todo sábado, começa logo às 8h e vai até meio-dia, no Centro de Convivência da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É uma forma simples de resistência ao método predominante de produção e empreendedorismo; um grito de solidariedade frente à hegemonia meritória capitalista; o amor e respeito em meio às disputas naturalizadas do sistema vigente.
A mesinha de Ilda conta com suas frutas, legumes e verduras. Mas também tem bolo de arroz, bolo de fubá, doce de leite, de figo, laranja, sidra. Seu marido e sua filha a acompanham e ajudam nas vendas. Quando ela não pode vir, Duda ou Fátima vendem por ela e entregam o dinheiro mais tarde. A relação é assim, de confiança. Ilda já não compra mais nada na cidade, desconfiada pelo desconhecimento dos processos de construção do produto. Autônoma, sabe fazer tudo que precisa e tem, inclusive, clientes fixos que só compram dela e contam sobre a melhora que tiveram na saúde desde que passaram a ingerir só orgânicos. E Ilda sorri, com uma pequena parte dela se perguntando: “sou eu mesma que estou promovendo tudo isso?”. Mas ela se lembra que sim: são ela, sua família, seus amigos, seus clientes; todos juntos formando uma teia de relações humanas sólidas, resistentes, bonitas. São todos, unidos, fazendo do mundo um lugar de paz e solidariedade.
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