
11 abr “Se vocês publicarem uma matéria dessas, vão destruir a vida da gente”
“Perua escolar carregava crianças para a orgia”, anunciava a manchete do jornal Folha da Manhã. “Kombi era motel na escolinha do sexo”, proclamava o jornal Notícias Populares. Era 1994, e o bairro Aclimação, na zona sul de São Paulo, estava em alvoroço. Seis adultos envolvidos com uma escola de educação infantil, a Escola Base, haviam sido acusados de pedofilia contra crianças de quatro anos.
Por dois motivos o caso repercutiu pelo Brasil inteiro. O primeiro motivo era a barbaridade das acusações. O que se dizia é que Maria Aparecida Shimada e Icushiro Shimada, os donos da escola, promoviam orgias sexuais com as crianças na casa de Saulo Nunes e Mara Nunes, os pais de um dos alunos. Paula Alvarenga, a sócia de Maria Aparecida, e Maurício Alvarenga, marido de Paula e motorista de uma kombi, também estariam envolvidos. A iminência de um escândalo de tamanha proporção chocou os moradores de São Paulo.
Mas o principal motivo é aquele que só foi discutido depois: os erros brutais cometidos pela imprensa ao noticiar os fatos. Concluídas as investigações, descobriu-se que Maria Aparecida, Icushiro, Saulo, Mara, Paula e Maurício eram inocentes de todas as acusações. Mas, nesse meio-tempo, já haviam sido completamente desmoralizados. Por conta da inabilidade da imprensa, os donos perderam todos os alunos, a Escola Base foi depredada pela população e os suspeitos tiveram que se esconder para não serem linchados.
Tudo isso poderia ter sido evitado se a imprensa tivesse mantido a ética jornalística desde o princípio. As coisas já começaram do jeito errado, quando o delegado responsável pelo caso ligou para o editor do jornal Diário Popular com informações exclusivas. De acordo com o auto, o relator disse que “tinha um caso bom, de violência sexual envolvendo crianças de 4 anos”.
Na mesma noite, um repórter do Diário Popular foi enviado para apurar a situação. Icushiro, um dos acusados, lhe apareceu para implorar: “se vocês publicarem uma matéria dessas, vão destruir a vida da gente!”. Mesmo sem provas, repórter e editor resolveram divulgar o conteúdo.
Ainda naquela semana, chegou o resultado do teste de corpo-delito feito nas crianças, indicando “positivo para a prática de atos libidinosos” (laudo nº 6254/94). Depois dessa afirmação, muitos jornais tomaram conhecimento do caso e apresentaram matérias acusatórias sem a versão dos acusados. Até aquele momento, nenhum deles havia sequer prestado depoimento para a polícia.
Nos jornais, Maria Aparecida, Icushiro, Saulo, Mara, Paula e Maurício foram acusados de exibir pornografia aos alunos, fotografá-los nus, beijá-los, contaminá-los com o vírus da AIDS e agredi-los, entre outras perversidades.
Depois, a situação só piorou. Notícias falsas foram veiculadas, um estrangeiro que sequer conhecia os acusados foi preso arbitrariamente e o sigilo bancário dos suspeitos foi quebrado. Jornalistas e investigadores agiam sem cuidado ou competência. Apenas depois de algum tempo, os acusados tiveram a chance de falar com a imprensa. A partir daí, e principalmente devido à interferência de Luís Nassif, da TV Bandeirantes – que colocou em jogo a pergunta “E se eles forem inocentes?” – é que o posicionamento dos outros veículos começou a mudar.
Ainda assim, talvez tenha sido tarde demais para reconsiderações. Em 22 de junho de 1994, quase três meses depois do primeiro Boletim de Ocorrência, os seis acusados foram inocentados; e os jornais, obrigados a se retratar e a indenizar as seis pessoas. O Estado de São Paulo, por exemplo, deveria pagar R$ 457 mil; a Rede Globo, 1,35 milhão. 25 anos depois, alguns dos acusados ainda esperam a indenização.
Mas o que parece é que indenização por indenização, somente, não resolve. Os danos às vidas dos acusados – que agora são vítimas -, dinheiro nenhum pode pagar. Cada um deles teve um final diferente:
Maria Aparecida e Icushiro perderam a escola e se envolveram em dívidas financeiras, muitas delas em decorrência dos problemas emocionais que Icushiro passou a ter depois do episódio. Maria Aparecida morreu de câncer em 2007; Icushiro faleceu em 2014, depois de um infarto.
Saulo e Mara Nunes também acabaram em dívidas, principalmente por conta da contratação de advogados.
Márcio e Paula se divorciaram. Márcio passou a ter medo de sair à noite e desenvolveu Síndrome do Pânico, enquanto Paula adquiriu depressão e sobrepeso. Em decorrência do caso, ela nunca mais foi contratada como professora.
O “caso bom, de violência sexual envolvendo crianças de quatro anos”, revelou ao Brasil o estrago que um jornalismo mal-feito pode fazer.
Hoje, as políticas públicas de comunicação podem defender a população de situações como a da Escola Base. Estas políticas atuam como uma intervenção estatal para fixar normas, estratégias e práticas de organização, regulação e gestão midiáticas. Não se trata de estabelecer pautas ou censurar conteúdos, mas de dividir o que é ético do que é publicável. Assim, a liberdade de expressão é uma liberdade responsável, em que deve se responder por aquilo que se fala ou que se escreve. Nada mais justo.
Por conta disso, o Estado tem o direito de aplicar sanções às empresas midiáticas que desrespeitarem a ética jornalística. Alguns exemplos deste desrespeito são a promoção de notícias deturpadas, a difamação da imagem de uma pessoa física e/ou jurídica e a veiculação de informações sigilosas.
Apenas com o respeito à ética jornalística é que o Brasil conhecerá a importância de uma sociedade informada, com capacidade de compreensão dos dilemas que a compõem enquanto sociedade. O jornalismo responsável têm o poder de garantir o pleno funcionamento das funções do Estado e, consequentemente, da democracia – e este, afinal, é o seu objetivo principal. Em nenhuma cláusula de lei ou linha editorial de veículo está escrito e assinado que o principal alvo da mídia é a ampla audiência advinda de notícias escandalosas. Isso já é outra coisa: manipulação, deturpação e um sério desvirtuamento de valores morais básicos.
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