Observatório Luminar
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Setor de cultura luta para sobreviver ao descaso público e à pandemia

Na constituição brasileira, a cultura é prevista como um direito, sendo de fundamental importância sua promoção e preservação. Dentro da lógica de uma sociedade, a cultura detém um papel essencial na construção da identidade da nação, possibilitando a livre expressão e produção de sentidos. Quando olhamos pelos retrovisores da história do Brasil, são os artistas e agentes ligados à cultura os primeiros silenciados durante momentos de repressão máxima, como na época da Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964. Com o fim da ditadura e com a criação do Ministério da Cultura, em 1985, sobe-se um degrau rumo à liberdade de expressão e ao acesso amplo e livre à cultura. 

Após sair vitorioso das eleições de 2018, Jair Bolsonaro anuncia a extinção do Ministério da Cultura, sendo suas atribuições incorporadas ao recém-criado Ministério da Cidadania. Antes mesmo do governo extinguir o Ministério, o setor cultural no Brasil já passava dificuldades de investimento, com a destinação de apenas R$ 9,1 bilhões investidos em 2018, correspondente a 0,21% do total de despesas da administração pública, e, após a pandemia, a situação só se agravou. 

Com a descontinuidade de projetos e ações, a inviabilização de instrumentos de apoio e fomento, cortes orçamentários, e extinção do Ministério, instituições culturais, artistas e agentes culturais começam a experimentar um grande entrave para se manter. Carla Luz, professora, diretora e atriz recém formada pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), conta que passou por momentos de rompimento de seus planos e projetos no ano de 2020 com o início da pandemia. Segundo ela, quando ficou em isolamento, entrou em um estado de negação: “Saí de todas as atividades relacionadas à área de cultura e passei a quarentena parada. Para mim, não fazia o menor sentido fazer teatro por meio de telas, teatro tem que ser presencial, ter toque, cheiro”. Já Amanda Barbosa, atriz, professora, produtora, gestora cultural e integrante do grupo de teatro uberlandense Trupe de Truões desde 2010, conta que, com o início da pandemia, foi preciso interromper todos projetos que estavam em execução, principalmente os voltados ao incentivo cultural. “Estamos há aproximadamente dez anos trabalhando com leis estaduais de incentivo, premiações via Funarte e fundo estadual de cultura. E, com a pandemia, tudo foi interrompido”. 

Carla Luz, na direita, em cena do filme “De Vez Em Quando Eu Ardo” que teve sua produção iniciada em 2019 e, por causa da pandemia, só foi finalizado no início de 2020.
Foto: Divulgação

Segundo dados divulgados pelo IBGE referentes à primeira semana de maio de 2020, o isolamento atingiu mais de 16 milhões de trabalhadores, somando 19,8% da população ocupada. A atriz da Trupe de Truões afirma que, em uma década no grupo, não viveu precedentes da crise gerada pela pandemia, a realidade foi desanimadora. Devido ao distanciamento social, Barbosa revela como foi essencial se reinventar no setor, pois ao interromper os projetos, também foram interrompidos os pagamentos e colocada em risco a saúde financeira do grupo. “Quando a pandemia chegou, começamos uma corrida contra o tempo. Tivemos muitas dificuldades no início, demoramos para aceitar a situação e começar a planejar tudo online, e entender que isso era uma coisa que não se resolveria em poucos meses”. 

Espetáculo “Zapato em busca de sapato”, que estreiou em 2016  pelo grupo de Teatro Trupe de Truões com elenco (Da esquerda para a direita: Ricardo Augusto, Amanda Barbosa, Ronan Vaz e Laís Batista) .
Foto: Divulgação

Mesmo passando por dificuldades, Barbosa e outras pessoas ligadas ao setor cultural lutaram para continuar na área. “Aliados a outros artistas de Uberlândia, começamos a pressionar os órgãos públicos a se posicionarem em apoio à cultura”, conta Barbosa. Em junho de 2020, foi aprovado o decreto federal que regulamenta ações emergenciais destinadas ao setor cultural durante a pandemia, que ganhou o nome de Lei Aldir Blanc em homenagem ao compositor e escritor que perdeu sua vida para o coronavírus. Em setembro, foram feitos os primeiros pagamentos dos R$3 bilhões que o governo disponibilizou para o auxílio da área. Já em abril deste ano, segundo a Agência Senado, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que prorroga esse auxílio emergencial para a classe artística. 

Segundo Barbosa, foi fundamental a união dos artistas locais para pressionar o governo a tomar medidas. “Houve uma grande movimentação em Minas e em outros estados para que fosse aprovada a Lei Aldir Blanc. E, apesar dela necessitar de diversos ajustes, ela foi e é muito importante e é resultado da nossa união”. 

Carla Luz foi uma das beneficiadas pela Lei Aldir Blanc em 2020 e, para ela, foi uma forma de devolver suas esperanças para continuar atuando. “Foi o primeiro projeto que inscrevi no edital e acredito ter sido muito importante para passar pela pandemia”, conta. No entanto, a artista afirma que o cenário de cultura dentro do contexto atual tem um horizonte desanimador. Ela lembra que, quando iniciou seus estudos em 2015, foi um momento positivo, já que era seu sonho desde muito nova. Mas, nos dias de hoje, talvez ela não entraria num curso de teatro: ”Nos dias de hoje, não encontro muita saída para a área cultural. As pessoas estão sendo mandadas embora em escolas. E ser atriz nunca foi fácil, mas no contexto atual está ainda pior”. 

Em abril deste ano, com o objetivo de estimular a produção e a difusão de conteúdos culturais, foi aprovado o Plano Anual do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). Em matéria para o site do governo federal, o Secretário especial de Cultura, Mário Frias, explica que o objetivo central do plano de trabalho do Pronac em 2021 é garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional. Criado pela Lei Rouanet, o Pronac tem o objetivo de captar e canalizar recursos para a área e  estimular a produção, a distribuição e o acesso aos produtos culturais, proteger e conservar o patrimônio histórico e artístico e promover a difusão da cultura brasileira e a diversidade regional. Ainda segundo Frias, o FNC tem a missão de atenuar, no que for possível, as consequências da COVID-19 na área cultural e de ampliar e qualificar o acesso da população brasileira a bens e serviços culturais. 

No entanto, a aprovação da Lei Aldir Blanc e do Pronac não são suficientes para atender os milhares de artistas, atores e outros profissionais ligados ao setor cultural. Segundo dados da pesquisa Percepção dos Impactos da COVID-19 nos Setores Culturais e Criativos do Brasil, atualizados em janeiro deste ano, entre nov/2020 e jan/2021, houve uma redução da renda de mais de 40% dos trabalhadores do setor variando a perda entre 50% a 100%. Para Carla Luz, pedir mais auxílios e incentivos para a área de cultura é algo utópico, e ela afirma: “Hoje em dia se o espetáculo não é de graça ou barato, as pessoas não entram. O teatro e o trabalho do ator é muito mais desvalorizado do que era lá atrás”. 

Para Amanda Barbosa, existe um descaso palpável do poder público em relação ao setor cultural. “Em relação ao governo, eu me sinto totalmente ignorada, desmotivada com a necessidade de provar o tempo todo que o que fazemos é algo de qualidade e é importante. E a sensação é de que não temos governo, é uma briga constante para que não percamos o pouco que conquistamos nesse tempo. Viver a pandemia e continuar fazendo teatro e gerir um espaço cultural tem sido uma grande dificuldade, estamos vivendo um dia após o outro, tudo muda muito rápido e sabemos que esses projetos emergenciais podem sumir de uma hora para outra, pensamos sempre lá na frente”, relata. Até setembro de 2020, somente 53% da verba da Lei Aldir Blanc havia sido liberada pela União. Foi somente em maio deste ano que chegou uma vitória do setor, conquistando a prorrogação da utilização de 700 milhões pela Lei que estavam anteriormente retidos.

Lorena Roje
Lorena.rojesanches@gmail.com
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