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UFU é parceira da ONU na rede de apoio a refugiados

Por Anna Júlia Lopes e Mariana Palermo

O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) divulgou relatório referente ao período de novembro de 2019 a março de 2021 que reconhece a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) como parte importante na rede de apoio a refugiados da etnia indígena Warao, oriunda da Venezuela. O relatório “Atuação do ACNUR junto às redes locais em apoio à população indígena Warao no Sudeste e Sul do Brasil: boas práticas e lições aprendidas” visa um Plano de Ação Emergencial para essa população duplamente vulnerável.

O refúgio é uma migração forçada, causada, principalmente, por situações de maus-tratos, crise econômica, conflitos de ordem política, guerras e desastres naturais. Dentre as consequências do refúgio em massa, podemos citar o fenômeno geográfico “explosão demográfica”, que afeta diretamente a economia e as relações sociais do país, pois ele não tem estrutura para receber essas pessoas, fazendo com que o acesso à saúde, ao saneamento básico, à segurança e a educação seja comprometido. Dessa forma, a fome e a miséria podem se instalar sobre a população imigrante que é afetada pela falta de empregos no país de destino. Nesse sentido, esse ciclo vicioso tende a manter-se até que haja esforços conjuntos dos governos, de ONGs, da iniciativa privada e, até mesmo, da população local a fim de acolher esses refugiados.

Além disso, o reconhecimento da população em receber esses imigrantes é muito importante. A refugiada venezuelana Ehvis Mitchel, que vive hoje em Uberlândia, conta que as pessoas na cidade possuem dificuldades em reconhecer os direitos de um refugiado. “ONGs locais e a UFU se organizaram para promover uma comunicação nesses espaços, explicando o que é o movimento de refúgio e os direitos que o refugiado tem, mas, mesmo assim, a gente ainda percebe uma dificuldade das pessoas em reconhecerem o direito ao acesso a esses serviços”, esclareceu ela.

A professora de Relações Internacionais da UFU, propositora e coordenadora local da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), Marrielle Maia, adverte para as consequências da incapacidade de alguns cidadãos em não reconhecer a diferença cultural dos refugiados no país. “Se você não respeita os aspectos culturais, é um crime – porque você está descaracterizando todo um povo e uma cultura que teve que fugir do seu território para conseguir proteger parte do seu patrimônio cultural e religioso”, alerta ela.

Na Venezuela, a crise que assola o país desde meados de 2013, colocou os cidadãos em necessidade de ajuda humanitária, expondo-os à fome, ao desemprego, instabilidade econômica, conflitos políticos e perseguições ideológicas. A situação emergencial afetou, com ainda mais impacto, às populações historicamente vulnerabilizadas que, sem meios para sobreviver à crise, acabaram forçadas a se deslocarem para o Brasil e outros países próximos. Dentre esses grupos, destacaram-se os povos indígenas que geraram um fluxo gradual para o Brasil, sobretudo a partir de 2014. 

Enquanto que o imigrante cruza a fronteira por diversos motivos pessoais determinados pela sua escolha, o refugiado o faz por ser forçado a fugir da situação que vive em seu país ou de algum tipo de perseguição, sem a opção de escolha. Ehvis era assistente administrativa na Venezuela e está no Brasil há dois anos trabalhando como costureira para ajudar a sustentar a sua família que permaneceu no país. Ela conta que trabalhou na Venezuela até conseguir se refugiar no Brasil, chegando ao país com apenas U$88. “A situação econômica e política do país piorou até que meu trabalho não era suficiente nem para comprar comida. Eu tive que tomar a decisão de sair, ou era ficar e morrer”, contou ela.

A antropóloga e assistente sênior de proteção da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) no escritório regional de São Paulo que faz o monitoramento de refugiados, Lyvia Barbosa, conta que no caso do fluxo da Venezuela para o Brasil, há mais um fator que influenciou a vinda de muitos venezuelanos: a generalizada e grave violação dos direitos humanos. A princípio, os venezuelanos precisavam provar a sua situação de refugiados, mas a partir de 2019, a Conare reconheceu a violação a fim de agilizar a análise dos pedidos de refúgio.

Em 2016, um grande fluxo de indígenas venezuelanos da etnia Warao foi para os estados de Roraima e do Amazonas, devido ao agravamento da crise emergencial no país de origem. Em seguida, em 2018, esses grupos se deslocaram para o Pará, Maranhão e outros estados da região Nordeste do país. Já em 2019, o deslocamento do grupo foi notado nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, e alcançadas também, em 2020 e 2021 na região Sul. Em março de 2021, a ACNUR estimou que no Brasil há 5.799 refugiados e migrantes indígenas venezuelanos, sendo destes, 69% provenientes da etnia Warao, presente em ao menos 23 estados brasileiros. “É uma população que chega no Brasil muito vulnerável, eles apontam que as principais razões para sair da Venezuela são a fome e a busca de tratamento médico, mas não encontraram em Roraima um local em que pudessem se integrar e ter condições de sobrevivência adequada. Então, começam a migrar para dentro do Brasil. Essa população sobrevive no Brasil da venda de artesanato de buriti e a outra atividade econômica é a coleta (prática de pedir dinheiro nas ruas)”, explicou Lyvia.

Relatório Acnur/Reprodução (disponível em https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/05/210531_ACNUR_RelatorioWarao.pdf)

A responsável por coordenar a área Warao do Taare, Gesiane Moraes, conta que o primeiro contato do projeto com os refugiados da etnia Warao surgiu quando o Conselho Tutelar e outras pessoas que conheciam a ONG passaram a enviar fotos dos refugiados, incluindo as crianças, nos semáforos de Uberlândia. “Eles estavam nas ruas todos os dias e nós queríamos saber o porquê. Fomos visitá-los e entender quais as suas necessidades, descobrimos que uma delas era a de documentação – que estava toda vencida –, porque como eles chegaram já durante a pandemia não conseguiram regularizar. Então, nós demos início a esse processo de regularizar a documentação, porque nenhum estrangeiro pode estar no Brasil com a documentação vencida, isso é muito grave. Começamos também a verificar quais os benefícios sociais eles estavam recebendo. Eles estavam recebendo o Bolsa Família, mas a Caixa Econômica Federal não queria mais pagar, justamente porque a documentação estava atrasada”, explica ela.

O número cada vez maior de imigrantes forçados ao longo dos anos mobilizou diferentes espaços da sociedade – como a criação do Taare –, o que gerou pesquisas e ações de extensão na universidade. A UFU já havia iniciado o contato com a ONU desde 2010, mas foi só em 2019, com a chegada da comunidade Warao em Uberlândia, que o ACNUR entendeu a cidade como um espaço estratégico para pensar suas políticas de acolhimento aos refugiados.

“A vinda da comunidade Warao gerou o problema de como lidar com esse grupo duplamente vulnerável, que era vulnerável por ser indígena e vulnerável por ser refugiado”, conta Marrielle. Segundo a professora, por esse motivo, havia a necessidade de trabalhar essa acolhida de uma maneira muito diferente das outras populações, o que fez com que a ONU percebesse a importância de atuar em Uberlândia.

A Cátedra Sérgio Vieira de Mello é um programa do ACNUR em convênio com universidades do Brasil – sejam elas públicas ou privadas. O foco principal do projeto é, em cooperação com as instituições de ensino, promover na educação, pesquisa e extensão acadêmica iniciativas que cubram a temática do refúgio. No caso de Uberlândia, a CSVM é um projeto ainda recente, tendo seu início em junho de 2020 com a criação do Grupo de Trabalho (GT) Warao que, com a professora Marrielle, fez um acompanhamento mais próximo das famílias Warao. Para Lyvia Barbosa, o trabalho da UFU foi essencial para garantir o acesso efetivo dessas pessoas aos seus direitos na cidade.

A parceria do ACNUR com as universidades, através da Cátedra e dos GTs, possibilitou relatar experiências e incluir atores públicos e privados para pensar em soluções para a comunidade Warao. O relatório publicado trata especificamente da estratégia dirigida de acolhimento com relação à população Warao, envolvendo um diagnóstico inicial sobre suas necessidades emergenciais.

Relatório Acnur/Reprodução (disponível em https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/05/210531_ACNUR_RelatorioWarao.pdf)

O plano de atuação do ACNUR São Paulo é voltado à proteção e integração desses indígenas e tem como base a mobilização e apoio à coordenação de redes locais por meio de GTs, o apoio à elaboração e implementação de planos de ação conjunta e o fortalecimento de capacidades de atores locais por meio de capacitações. No caso de Uberlândia, o relatório citou as seguintes boas práticas: articulação em rede, sensibilização do Conselho Tutelar, parceria com a Cátedra, acesso à saúde, acesso à assistência social e reforço escolar.

Segundo o relatório, a chegada da etnia Warao aos estados do Sudeste e Sul brasileiro provocou novos desafios às redes de apoio a refugiados locais, devido à barreira linguística – a população tem uma língua própria de mesmo nome: o Warao – , em conjunto das diferenças culturais e das especificidades alimentares. “É uma população completamente diferente da nossa e, a partir disso, surgem as dificuldades de entender os costumes e as atitudes”, comenta Lyvia.

De acordo com Gesiane, os dois maiores empecilhos na orientação dessa população foram o aspecto cultural de levar as crianças para a “coleta” e a questão da cesta básica. Ela explica que a cesta básica brasileira – que consiste majoritariamente em ovos, arroz, feijão, macarrão e óleo – é diferente da venezuelana e, principalmente, da Warao, que tem como base alimentar frango, peixe, ovos, arroz, fubá, milho e mandioca. Por esse motivo, as doações não supriam a fome das famílias, já que elas não sabiam como utilizá-las.

A partir das discussões realizadas periodicamente nos GTs, da compreensão das particularidades culturais e da comunicação com os Warao sobre suas demandas, foi elaborado um plano de ação para o encaminhamento das necessidades e da proteção e integração Warao dentro do município de Uberlândia. Dentre as principais estratégias do projeto está o encaminhamento para rede de saúde, para a rede socioassistencial e das crianças para matrícula em escolas da rede pública. Somado à proteção dessas pessoas – através da saúde e do direito de documentação –, há também um mapeamento das habilidades laborais, para que sejam criadas estratégias de geração de renda e integração local. Para a professora Marrielle: “é preciso atender essas pessoas que adentraram nosso território e reconhecer a dignidade delas”.

De acordo com Marrielle Maia, a educação é fundamental, pois é um dos principais caminhos para a transformação social no campo dos Direitos Humanos para mudar essa realidade e buscar a proteção desses povos que precisam de ajuda na busca pela sobrevivência. “Um país que acolhe bem o seu imigrante forçado é um país que respeita a cultura. Eu vejo que, de um lado, a educação e no outro lado, a comunicação. E claro, o poder público tem a obrigação de promover políticas públicas nesse sentido”, esclarece ela.

O Brasil possui uma lei de refúgio que é uma das mais avançadas no mundo, permitindo que os refugiados tenham o direito de acesso a todos os benefícios sociais que os brasileiros nascidos no país, como educação, saúde pública, bolsa família e emergencial, tornando o país um dos mais avançados em comparação às leis de refúgio dos outros países. No entanto, o Brasil ainda apresenta poucas políticas públicas dirigidas a essa população, incluindo a cidade de Uberlândia, que necessita com afinco do trabalho de ONGs locais para auxiliá-los a reconstruírem suas vidas. “O GT Warao atende emergencialmente, mas é necessário que o poder público se sensibilize para que sejam promovidas políticas de fato. Não só para a população Warao, mas para os refugiados em geral”, finaliza Marrielle.

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