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Uma farsa anunciada: o Relatório Final da CPI da FUNAI-INCRA

Em meados de 1976, publicava-se na Europa o livro A política de Genocídio Contra os Índios do Brasil. Os autores desta obra, um grupo anônimo de antropólogos que não podiam se identificar em razão da vigência da ditadura militar (1964-1985),  denunciavam as violações do Estado contra a vida dos povos indígenas do Brasil. A esta época, inúmeros ameríndios estavam sofrendo com atrocidades, que eram justificadas por um progresso econômico no Brasil que alcançou apenas uma pequena parcela da população.

 

Mulheres Guarani em protesto. | Foto: Comissão Guarani Yvyrupá

 

Embora atualmente tenhamos um cenário político-social nacional diferente daquele no qual tal manifesto-denúncia foi publicado, a situação dos ameríndios e daqueles atores sociais que os auxiliam na luta para assegurar seus direitos ainda continua muito semelhante ao período autoritário. Isto porque, no último dia 17 de abril (2017), o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (FUNAI/INCRA) foi aprovado pela Câmara Federal. O documento criminaliza o trabalho de antropólogos, servidores públicos e ativistas que trabalham nos processos de demarcação das terras indígenas e quilombolas.

 

Há pouco mais de um ano e meio, a alusiva CPI – comissão predominantemente constituída por parlamentares ligados ao agronegócio, reunidos em torno da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) – iniciava uma “investigação” sobre a atuação dos mencionados órgãos, Organizações Não Governamentais (ONGs) e atores envolvidos no processo de demarcações de terras.

 

No texto final, um total de 3385 páginas, os relatores afiançam que os trabalhos possuem irregularidades. Os principais pontos do documento são: 1) Suposição de  predominância das ONGs em atuação nos Grupos Técnicos (GTs) encarregados de realizar as demarcações, o que diminui o alcance da FUNAI; 2) Consideração de estímulo à “invasão” de terras por parte de ONGs e demais agentes ; 3) Questionamento da identidade étnica de alguns povos, como o caso dos Tupinambá de Olivença-BA; 4) Alegação de que a condição indígena não se resume apenas a questão das terras, uma vez que grande parte do território nacional já foi reservado para os povos indígenas; 5), Consideração de  que muitas terras não são tradicionalmente ocupadas pelos ameríndios que as reivindicam, pois entendem que estes povos não são originários da região específica.

 

Além disso, a versão final do Relatório, conforme assina o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), seu relator, propõe o indiciamento de 88 pessoas. Entre os indiciados estão:  lideranças indígenas, antropólogos, servidores públicos e entidades como a Comissão Missionária Indigenista (CIMI) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), históricos apoiadores da luta pelos direitos dos povos indígenas e tradicionais no Brasil. É importante lembrar que estes indiciamentos não possuem qualquer fundamentação jurídica.

 

Os argumentos que sustentam o Relatório Final são frágeis e não passam de inverdades e meras acusações sem qualquer fundamento. Por exemplo, os deputados ruralistas alegam que as terras indígenas atenderiam interesses de governos e agências estrangeiras. Mas os senhores deputados ignoram que a terra indígena faz parte do território nacional e é patrimônio da União, portanto, intrasferível.

 

Afora isso, os deputados ruralistas escondem os esbulhos e assassinatos que os povos indígenas enfrentam há cinco séculos de história de contato. Como também desconsideram que a terra é mais do que terra, isto porque o modo de vida ameríndio vincula-se ao espaço pelo qual vivem. E quanto à identidade, não levam em consideração as ações que a autoridades seculares e religiosas empreenderam contra as identidades desses povos, com o intuito de transformá-los em escravos, súditos, trabalhadores rurais, etc. Então, estes povos, para não sofrerem preconceitos e todo o tipo de violência, tiveram que esconder suas identidades aos olhos daqueles que os subjugavam. Assim, o ressurgimento dos Tupinambá e de outros povos se deve ao trabalho de afirmação identitária que estes indígenas vêm promovendo na contemporaneidade, como também ao desenvolvimento das pesquisas antropológicas que nos fazem melhor compreender tais processos.

 

Fica ainda claro o desconhecimento dos deputados quanto à forma de se conduzir os trabalhos de demarcação das terras indígenas e quilombolas. O Decreto n.º 1775/96, além de colocar a FUNAI como responsável pela condução dos trabalhos, versa que estes trabalhos são multidisciplinares, ou seja, envolvem antropólogos, biólogos, cartógrafos e outros profissionais necessários para tal tarefa.

Não há outra expressão que melhor defina este documento do que a palavra farsa. Uma farsa que tem sua origem desde o momento em que foi aceito o pedido de instalação da CPI da FUNAI-INCRA e se confirma com sua aprovação na Câmara dos Deputados. Tal CPI foi uma entre tantas outras formas que o agronegócio e seus subservientes encontraram para contestar os trabalhos de demarcação das terras indígenas e quilombolas, bem como criminalizar os profissionais envolvidos em tais processos.

 

*Antropólogo e doutorando em Ciências Sociais pela UNESP-Araraquara. 

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