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Vagabundos, nordestinos e crioulos: porque a “gente diferenciada” é revistada no shopping

 “No Brasil existem dois países: um não quer conviver com o outro e isso se torna claro ao recorrer à força bruta estatal para discriminação”, diz Fábio Ribeiro | Foto: Marco Zarboni

 

Em 2011,o projeto de construção de um metrô em Higienópolis, zona “nobre” da cidade de São Paulo, trouxe – como é habitual quando se movem as estruturas – desconforto à elite residente e hegemônica da região. Ana Maria Barone, dona de casa condizente ao padrão da minoria branca sustentada por braços negros, revirou o país ao declarar, durante entrevista à UOL Notícias, que considera Higienópolis “um bairro tão mais tradicional que não seria legal esse povão, esse monte de gente diferenciada, vir pra cá”.

 

Mas Ana Maria é só uma dentre mil que sustentam o mesmo argumento. De fato, o tal do direito de ir e vir, garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo quinto, vem sendo citado a todo o momento pelos estratos rijos da sociedade, seja no caso do metrô de Higienópolis – cujo projeto, inclusive, foi cancelado mais tarde –, seja durante as ocupações das escolas por secundaristas durante o ano de 2016. O argumento do bloqueio do “meu ir e vir” anunciado pela burguesia se relaciona,  inclusive, com a situação dos “rolezinhos”, movimento iniciado no final de 2013 por camadas populacionais advindas da periferia. O objetivo dos “rolezinhos” é  desfrutar do prazer e da diversão em shoppings de São Paulo e demais capitais brasileiras.

 

A fala de Victoria Fernandes, vendedora da grife Calvin Klein do shopping JK Iguatemi, ao jornal O Globo, evidencia o legado: “a partir do momento que o direito de ir e vir deles prejudica o meu direito de ir trabalhar, já acho que está errado. Vão protestar em outro espaço. Sábado é o dia de mais vendas. Fomos prejudicados”. Os encontros dos jovens começaram, a princípio, sob o objetivo de reunião para diversão. Porém, em decorrência da reação desproporcional da polícia e da Justiça, os “rolezinhos” se estenderam pelo país e ganharam  caráter político e contra-hegemônico. Ao serem humilhados, nesse mesmo dia, por um rapaz boêmio, no Iguatemi, chamados de ‘vagabundos, nordestinos e crioulos’, os manifestantes perceberam que a favela, em espaço de elite, incomoda.

 

 O “grito pelo lazer” e o desejo de inserção no mercado do consumo, reivindicados por esses jovens durante os anos de 2013 e 2014, reestruturou os debates no país. A adolescente Beatriz, à época com 13 anos de idade, relatou ao periódico IstoÉ, que “a gente precisa ter mais lugar pra ir”. Assim confirma Jefferson Luis, um dos organizadores de um rolezinho realizado no shopping Guarulhos: “fora o shopping, aqui a única coisa que posso fazer é jogar bola, empinar pipa e ficar no Facebook. Todo mundo precisa se divertir”. A manifestação – reafirmação de existência – desses jovens gerou consequências nacionais, como a decisão liminar que proibia os encontros e a utilização de balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, cacetete e demais violências policiais comuns (aos jovens negros).

 

De forma heterogênea, os encontros surgiram também como protesto a outra liminar judicial, que coibia os bailes de rua, permeados a funk, nas periferias. O estilo musical, por ser ligado a uma classe social, é alvo – inclusive hoje – de ameaças da elite. É exemplo a proposta do empresário Marcelo Alonso, que quer proibir o funk sob a justificativa de que este é “um recrutamento organizado nas redes sociais por e para atender criminosos, estupradores e pedófilos na prática de crime”. A proposta conta com cerca de 20 mil assinaturas no site do Senado e evidencia: querem extinguir tudo o que não é padronizado como branco e rico.

 

Em razão  da falta e da desvalorização de espaços públicos, que acontece não somente em São Paulo, mas no Brasil como um todo, o  shopping surge como alternativa de diversão para quem não tem outras opções. Vale lembrar que o espaço, sendo de âmbito público-privado, não pode obrigar o consumo ou controlar a entrada e saída de pessoas; mas, como já diria o colunista Fábio Ribeiro, “no Brasil existem dois países: um não quer conviver com o outro e isso se torna claro ao recorrer à força bruta estatal para discriminação”.

 

Desde o ano passado, se tornou comum a prática de controle e revistas dentro das dependências do shopping. Em Uberlândia, o Center Shopping conta com patrulha e restrições impostas pela guarda particular.Ainda na última semana, foram parados – sem motivo explícito – dois jovens negros, menores de idade, que circulavam pelo local. O racismo no Brasil é tão evidenciado que, infelizmente, o caso não chega a ser chocante – reabre a antiga discussão, no entanto, sobre o caráter e planejamento da cidade: não apenas o shopping, mas Uberlândia é feita para quem? O Brasil é feito para quem?

 

As respostas já são mais concretas do que deveriam: a violência às minorias vem tomando conta dos espaços e das atitudes, cada vez mais e com o apoio da justiça e das forças armadas. Apesar de leis, medidas mitigatórias e compensatórias enunciadas pelo Estado, tais quais a Lei n° 7.716/1989 e a Lei n° 10.639/2003 – que sancionam, diretamente, sobre crimes resultantes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; e sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo escolar, nos níveis fundamental e médio -, e, apesar dos inúmeros debates promovidos acerca do racismo nas últimas décadas, é evidente que ainda existem cores de pele mais valiosas que outras.

 

A realidade dos rolezinhos é fruto de raízes muito mais profundas, a evidenciar a discriminação por raça, a desigualdade social, as condições culturais-históricas, as injustiças sócio-econômicas passadas e presentes. Como disse o rolezeiro Jefferson Luis: “é fácil proibir e criticar o funk. Difícil é instruir um centro cultural para ensinar música para os jovens”. Na mesma lógica, é fácil proibir e criticar quem vive às margens sociais, difícil é abandonar a mesquinharia e trazê-los ao centro. Antes fosse apenas Ana Maria Barone a desfilar discurso de ódio contra toda a “gente diferenciada”: em estrutura de gente branca, ‘vagabundo, nordestino e crioulo’ só entra pela mão da polícia.

 

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